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 | Foto: Acervo Franz/Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Acervo Franz/Arte: Felipe Lima

O jornalismo é o exercício diário de encontrar histórias. Também é a experiência insana de perdê-las, por ignorância ou azar. Sugiro que alguém faça um inventário das notícias extraviadas pela imprensa. Uau, seria de chorar sentado no meio-fio. As minhas são muitas – uma delas é a da artista plástica Isolde Hötte Johann, a que mais doeu. Foi assim.

Em março de 1994, a colunista Nery Batista ligou para a redação da Gazeta do Povo avisando da morte de Isolde. Caprichou na ênfase: “Ela era a única mulher do grupo do pintor Alfredo Andersen”. Não rolou. À revelia da idade – a artista tinha 92 anos –; e dos apelos do gênero – ser a única mulher em meio a célebres pimpões barbados –, pesou o fato de que Hötte tinha se tornado uma desconhecida.

Não houve sentimento do qual Hötte não tenha provado em doses cavalares – do desprezo à liberdade, tudo lhe diz respeito

Somando um mais dois, havia passado quase meio século no ostracismo voluntário. Se queria o esquecimento, tinha conseguido. A informação morreu ali, numa injusta nota de pé de página. Isolde foi para descanso eterno no Cemitério Municipal. O jornal, para a gráfica. A edição em que ficou relegada a figurante jaz no arquivo, ao sabor dos fungos. O resto é a eternidade.

Exatos 15 anos depois recebi um telefonema da pesquisadora Maria José Justino. Tinha algo incrível para contar – marcamos encontro. De uma valise, sacou uma pasta verde que parecia um arquivo da Stasi. Tinha sido confiada a ela por um senhor que acabara de conhecer. Na capa, um adesivo no qual estava escrito “Franz”. Só. Dentro, 150 páginas com recortes, fotos e textos reunidos por Franz Ludwig Höpker, 80 e poucos, o único filho da curitibana Isolde Hötte. O recado era curto e grosso: ele nunca deixou de acreditar na obra da mãe. Queria lhe fazer justiça com uma biografia, procurava alguém para escrevê-la.

Maria José não economizou: pôs Isolde para correr na baia de Frida Kahlo e Camille Claudel. Não faltava a “Kerle”, como a chamavam, nenhum quesito. Qual as outras, passaram-lhe uma borracha, mas os lances quase ficcionais de sua trajetória se impuseram. Os verdes anos de Hötte lembram uma página de Proust – as mansões onde viveu, as preceptoras, as viagens. Babados e tranças formam seu retrato. E claro – tinha um cavalo e fazia equitação.

Bela, culta, cheia da grana, estava licenciada para ter opinião e pavio curto. Aos 17, debutou... nos salões de pintura. Nos doidos anos 1920, mudou-se para Berlim, onde cursou artes no Berliner Kunstgewerbermuseums. Provou das vanguardas estéticas. Convocada pelos pais a voltar, fez o que qualquer um faria: bateu o pé. Não trocaria o ateliê do bárbaro expressionista Emil Orlik, com quem estudava, por uma cidade de 80 mil habitantes onde uma moça não podia atravessar a Praça Tiradentes sem ficar falada.

Bem, o que se sabe é que se casou com um alemão, deu à luz a Franz, até o casal travar uma guerra conjugal, no que era doutora. Em 1928, volta para o Brasil. Em 1932, divorcia-se. Suspeita-se que nunca arrefeceu o desejo de morar de novo na Europa. Crise após a crise – a de 1929, a da Segunda Guerra, foi ficando, por intermináveis décadas de espera.

Isolde poderia ter ostentado o título de melhor pintora de todas as araucárias, mas ser uma das primeiras divorciadas da paróquia deve ter reduzido, sei lá, o número de convites para jantar. Continuou pintando, não mais com Andersen, mas com o amigo Freysleben e com Lange de Morretes. Produziu muito. Pouco mostrou. Seu acervo de telas, desenhos, pastéis e cerâmicas só se calcula com o socorro de peritos. Todos os espaços da casa foram tomados. Empilhava trabalhos até debaixo dos tapetes. Enquanto isso, o número de exposições era diametralmente oposto, em especial depois dos anos 1950, quando pingou a última gota no seu pote cheio mágoa. Talvez nesse momento tenha decidido ser quem era. Mandou-se para Porto Alegre. Voltou tempos depois, vovozinha.

Amarga, ressentida, infeliz? Cada novo narrador de Isolde, a artista esquecida, permite-se uma hipótese. Estar pouco à vontade na província seria motivo o bastante para que se exilasse nos metros quadrados de seu apartamento, e o mundo que se danasse. Teca Sandrini, diretora do Museu Oscar Niemeyer (MON), acha que esse é só um lado da moeda. “É premeditado creditar tudo ao temperamento difícil de Isolde. Suspeito que ela era exigente demais consigo mesma, por isso quase não mostrava o que produzia”, comenta, sem se furtar de compará-la, na vida e na obra, a outro gênio trágico – Miguel Bakun.

Desde o fim de 2014, o MON oferece uma pequena mostra educativa de Hötte, com 32 obras. Ela está ali por inteira – uma criadora fora do clube, que não beijava a mão de ninguém e podia experimentar até a vida acabar. Curtia pintar uma névoa, mas desafiava os tons de cinza de sua existência. Em vasos de flores e na série “negros” nos passa uma rasteira e desmonta a imagem de “a esquisitona do condomínio”: esbanja luz, cor e movimento.

Se alguém quiser chamar ao que vê de alegria, nada contra. Não houve sentimento do qual Hötte não tenha provado em doses cavalares – do desprezo à liberdade, tudo lhe diz respeito. Foi o que se percebeu logo que Franz decidiu abrir o acervo secreto da mãe para a visitação de uns poucos eleitos. Plantou uma dúvida deliciosa – talvez Isolde não estivesse tão às moscas quanto se julgava. Como disse o poeta norte-americano Robert Frost, “é no silêncio que a beleza coloca seus ovos”.

*** Confira matéria sobre Isolde Hötte publicada na Gazeta do Povo em 2010.

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