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 | Foto: Ivonaldo Alexandre
| Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre

O costureiro e estilista paranaense Eleuther Guimarães, 88 anos, anda atormentado por uma dúvida. As sócias do Centro de Letras reivindicam, feito black blocs em fúria, que ele lhes dê uma palestra sobre moda – sua praia há seis gloriosas décadas. Ele se escusa, teme não agradar. Sabe que é primaz da alta-costura no estado, um homem raffiné, mas também de implacável sinceridade. Suportarão?

Torço para que Eleuther tope a parada, e para que não fale só de moda. Que trate também de mulheres, no que é um bamba. Vê-lo descrever suas Marilus, Ingrids e Noemias lembra o que dizia a coreógrafa Pina Baush: "Não me interessa a maneira como as pessoas se movem, mas o que as faz se mover." Pois é. Desde os idos dos anos 1950, quando deu de rasgar as melhores sedas, Eleuther examina as clientes para entender o que são e onde querem chegar.

Faz uso de métodos só seus. Pede, por exemplo, que andem, para cima e para baixo, de modo a captar o que a expressão corporal denuncia sobre elas. Há espaço de sobra no ateliê que mantém na "Mariano Torres". Que vão e voltem. Que girem. É em meio a essa coreografia que ele toma ciência do colo e das pernas. Do talhe e do rosto. Do aplomb, como prefere. Não o faz para julgá-las: antes de vesti-las é preciso despi-las. Quem não quiser, que recorra às folhinhas de parreira do Éden.

Não o tomem por um sujeito metido a psicanalista. Longe disso. Eleuther, inclusive, é pródigo em arrancar risos: "Me diga, qual a cor que seu marido ‘não’ gosta?" E um bom jogador. Sequer abre a caixinha de alfinetes se não puder mandar em pelo menos 50% da roupa. Se o grau de confiança entre ele e elas chegar perto de 100%, ulalá. E acreditem – é raro vê-lo trabalhar com índices abaixo desse. As freguesas logo entendem que não estão nas mãos de um modista, mas diante de um espelho generoso. Se desajeitadas, bundudas ou da categoria "conduzindo miss Daisy", pouco importa. "Você é linda", sussurra, logo que encontra o élan que procurava.

Três acasos levaram Eleuther a se tornar um bruxo da alta-costura – a família, a religião e... Copacabana. Por partes. Nosso herói é quatrocentão de Paranaguá – o Visconde de Nácar e até o escritor José de Alencar são sangue de seu sangue. Sabe a genealogia de cor, aprendida em uma mansão cheia de quartos, debaixo de infinitos babados e de uma hierarquia de talheres. Ainda hoje, guarda baixelas de prata, leques e insígnias, a ponto de sua casa se confundir aos incríveis "gabinetes de curiosidades" do século 19. Que tal uma página do caderno de caligrafia da infanta dona Francisca, de 1832? Pois está na parede da sala, como prova de sua simpatia à monarquia. O sofá rococó, parisiense, de 1885, "foi do visconde". A cama é de 1908. Os santos barrocos e os cuzquenhos, melhor vê-los de joelhos.

Tudo era escandalosamente bipolar no solar dos Guimarães. Na mesma varanda em que tias "exóticas", como a Zezé, liam livros proibidos pela Igreja, o menino Eleuther circulava com uma capa igual à de Santa Teresinha de Lisieux, sua primeiríssima paixão mística. Anos depois, entraria para o Mosteiro de São Bento, em São Paulo, contra a vontade do pai. Se os frufrus e as ousadias da casa rica marcaram seu gosto, a soberba liturgia católica se encarregou do resto. Ele põe o clero no chinelo. Ao ouvi-lo, difícil não lembrar de Fellini, que no filme Roma faz um desfile de moda com trajes episcopais.

Por ironia, a morte do pai, em 1951, sela o desligamento de Eleuther do claustro. Ficou um ano sem rumo, em Copacabana, melhorando o sotaque. Um imigrante alemão, as donas de uma maison française e duas judias austríacas, em sequência, cruzaram seu destino, fazendo-o ver que a pessoa é para o que nasce. "Eu não queria ser alfaiate", brinca. É longo capítulo e as jornalistas Danielle Brito e Camila Faria já escreveram muito bem sobre a apoteose desse paranaense nos anos dourados cariocas. Prefiro me furtar.

Cabe aqui contar que outra morte, a da mãe, Irina, na década de 1960, trouxe Eleuther de volta a Curitiba. Chegou a pensar que nunca encontraria freguesia. Errou. Bastou-lhe um elogio do colunista Carlos Jung ao vestido de Síria Chede de Castro. "Nunca mais tive sossego. Não precisei colocar placa na porta, nem tenho cartão de visitas." A quem interessa possa, o estilista ainda se emociona quando vê entrar na igreja uma noiva que vestiu. Acompanha-a até a porta. É sagrado. E odeia minissaias. Tomara fale disso na palestra do Centro de Letras – as convidadas vão amar.

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