• Carregando...
 | Foto: Henry Milleo – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Henry Milleo – Arte: Felipe Lima

Nos tempos de guria, em São Bento do Sul (SC), Leonira Vidal, 71 anos, ouviu que para conseguir casar, além de pedir a Santo Antônio, tinha de saber costurar. Mesmo sem ter paixão pelos alinhavos e cerzidos, fez um terno para o pai, coseu o próprio vestido de noiva. Virou uma dessas ciladas do destino – nunca mais parou de colocar fio na agulha. Fosse dar um título para sua biografia, seria: "Como uma mulher que não gostava de costurar ajudou tanta gente com sua costura". Eis a história.

O ano, 1974. Mãe de um "filho especial", Leonira trocou a casa que tinha por um fogão a gás, e se mudou com a família para Curitiba, em busca de recursos médicos. Alugou uma meia-água no Parolin. Nunca tinha visto uma favela. Quanto mais uma favela que tinha um lugar apelidado de "Valetão" – uma fileira de palafitas na beira do Córrego Guaíra. Ao vê-las, acreditou que podia fazer alguma coisa pelos vizinhos – rezar, por exemplo. Foi assim que nasceu o mito Leonira.

Para ela não tinha nove horas. Batia palmas no portão, convidava para o terço e ganhava um "não". Logo entendeu o motivo – as mulheres tinham vergonha de lhe abrir a porta dos barracos. Partiu para o "plano B": batia palmas, levava o "não", mas prometia voltar no sábado. "Trago um doce para as crianças." Bingo. No retorno, encontrava o portão destrancado, a piazada de banho tomado e ainda conseguia arrastar as mães consigo até a próxima vizinha.

Virou uma febre. As rezadeiras podiam surgir num beco, a qualquer momento, categoria "procissão perpétua". O Parolin nunca esteve tão perto do céu. Os "BOs das santas" são um sarro. "Dona Leonira, o que a senhora está fazendo na rua tão tarde da noite?", ouviu, mais de uma vez, do assaltante ao reconhecer a sua presa, às passadinhas, pelas ruelas escuras do "Parola". Ri.

Próximo capítulo. O ano, 1988. Era preciso um lugar para as mulheres da vila se encontrarem. Leonira, Mariquinha, Damiana e Francisca, para citar algumas, botaram o olho num terreno de 16 x 30 na esquina da Rua De Plácido e Silva com a Brigadeiro Franco, perto do Sergipe Futebol Clube. Alagava – bem podiam dá-lo às piedosas, para que erguessem uma capela em honra de São Sebastião, o mártir garboso que morreu debaixo de flechada. Costurariam para fora, se preciso fosse. Leonira ensinaria o riscado às amigas.

Assim foi. Quando via que as gurias desanimavam nas lides do corte e costura, Leonira fazia curso disso e daquilo e anunciava a novidade como se fosse a segunda vinda de Cristo. Lotava o galpão. Um dia ensina tear e a fazer tapete; no outro, a reformar roupa velha. De modo que quem não tem traje para ir num casamento passa por ali e sempre encontra algo para fazer bonito. A preço de ocasião.

Dona Leonira é mulher baixinha – tem 1,40 metro e a velocidade dos hiperativos. Difícil não dar choque. À noite, cabeça no travesseiro, planeja quem vai visitar amanhã, quanto precisa ganhar para pagar as despesas da capela. De manhã bem cedo, arruma a cama primeiro de tudo, pois não sabe a que hora volta.

Ela se confunde com a obra que ajudou a erguer. Mais do que isso – forma um carretel de linha com o movimento social em Curitiba. Só um aperitivo: na década de 1980, os baixios onde estão o Parolin, Fanny, Lindoia e Guaíra abrigaram uma revolução popular, em torno da Comunidade Profeta Elias, uma usina de ideias pastorais plantada no epicentro das quatro vilas. É assunto longo, mas vale dizer que da turma que atuava por ali nasceu a Casa do Servo Sofredor; a Casa dos Meninos de 4 Pinheiros; os educadores de rua, e... a Capela de São Sebastião.

À primeira vista, a capelinha pode não passar de um puxadinho que abriga 32 voluntárias, e um depósito de cestas básicas para atender 60 famílias. A diferença é que funciona num desses bairros que não têm um problema, têm todos. Nesse cenário, impressiona a turma da Leonira, com suas sacolas cheias de panos, desafiando na base da agulha e da linha as estatísticas de violência, da pobreza e tudo mais.

"As pessoas acham que sabem tudo sobre o Parolin. Aqui a gente mostra o que elas ainda não sabem", comenta. Dá vontade de levar Leonira para fazer discursos em zonas de guerra. Ela causaria um bem danado nos chatos e desiludidos. Essa mulher, afinal, sabe bater palmas no portão e oferecer doces. Leva as pessoas a vestirem a melhor roupa e sair à rua. Se costurar ajuda a casar ela até hoje não sabe, mas que ajuda a viver, ajuda.

Dê sua opinião

O que você achou da coluna de hoje? Deixe seu comentário e participe do debate.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]