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Todos os meses, alguns jornalistas da Gazeta do Povo circulam por escolas de Curitiba e região metropolitana para conversar com os alunos. A maratona faz parte das atividades do projeto Ler e Pensar, do Instituto RPC. Na hora do bate-papo, invariavelmente um pimpolho de calças curtas levanta a mão e pergunta qual foi a matéria que mais gostamos de fazer.

Uau – quando acontece comigo, me enrosco todo. Espremo o Caco Barcellos que mora nas profundezas de cada repórter para ver se lembro de um dossiê, de uma denúncia. Putz! Puxo pela memória um tiroteio, uma rebelião no Educandário São Francisco, aquela tragédia – aquela.... E nada – Clark Kent não vira Superman. Que papelão, seu José.

Tudo o que me vem à mente é uma tarde gelada num café da Rua Carlos de Carvalho, em companhia de três damas adiantadas em anos. Foi em 2003. A matéria que resultou desse encontro não mereceria um Prêmio Esso. Mas não há como ignorar o prazer de ter entrevistado as escritoras veteranas Liamir Hauer, Margarita Wasserman e Vera Buck. Foi uma verdadeira melodia sentimental. Quando explico à molecada as razões do meu afeto, algo me diz que eles entendem. No final, há quem queira saber se as vovós ainda estão vivas. Se passam bem. "Por que não viraram manchete?"

Às falas. O escritor Jamil Snege – colunista da Gazeta do Povo – publicou de certa feita uma crônica sobre umas senhoras que o assediavam para que fizesse a orelha dos livros que deram de escrever, no outono de suas vidas. O texto foi um sucesso. Logo as três viraram "as meninas do Jamil", para tristeza de Vera, que considerava o título "coisa de chacrete, um horror."

Por pouco não cabulou o encontro que reuniu as "The Supremes" para um dedo de prosa. Quando chegou, deu-se o milagre. Entre docinhos e golpes de café rimos às pampas com as biografias incomuns daquelas mulheres escaldadas pela vida, mas então livres, absolutas, donas do carnaval.

Por ironia, a reportagem saiu publicada no mesmo domingo em que Snege morreu, em decorrência de um câncer no pulmão. Imagino que acabou sendo lida como um testamento sobre o poder que as palavras têm de mudar o destino das pessoas. O Jamil havia incentivado suas amigas a não se contentarem com uma manta de chenile em cima das pernas. Um pouco por conta dele, Liamir, Margarita e Vera preferiram a pena à agulha de tricô. Como esquecer?

Dia desses, recebi uma carta da Liamir. Exibi-a feito um troféu. São três páginas lindas e divertidas como a autora. À moda do que acontece nos encontros com a piazada dos colégios, recorri à gíria para traduzi-la. "Ela é um barato." Tenho cá para mim que a Liamir tinha de ser estatizada, como as hidrelétricas e os poços de petróleo, para que todos tivessem algum direito garantido a sua companhia.

O primeiro impacto que ela deixa é visual. No nosso café-com-bobagem de 2003 ela estava vestida para um show da Madonna – de calça fuseau. Tinha 80 anos e ainda era um broto. Mas quer saber: a roupa descolada virou poeira. Bom mesmo foi ouvi-la rir de casamentos desfeitos, das pensões perdidas, das viagens micadas. Nem o fim da juventude nem a morte do filho Ernani lhe traziam rancor.

A carta que me escreveu repete esse número. Atente para esse parágrafo: "De um modo geral, o idoso está situado em um plano ocioso, sem qualquer serventia, o que não é o meu caso. Apesar de meus 85 anos bem-rodados, pneus carecas, queimando óleo 40, felizmente ainda não bato pino." Relata em seguida que dirige seu próprio carro e que é uma senhora quebra-galho para a família. Com meia dúzia de livros publicados, palestra nos vetustos círculos literários do estado e passa muito bem, obrigada.

Essas informações são seu "prefácio interessantíssimo". O que ela queria mesmo contar é que está pronta para dar uma nova virada. Em 2009, vai escrever um livro – mesmo que seja o último – sobre os pobres e anônimos. "O importante é descobrir o que ninguém vê, criar ibope de coisas humildes... É a promessa que faço a mim própria."

A decisão veio depois que a autora se aproximou de Izabel – a poeta de rua que datilografa versos embaixo de uma marquise, próximo à Reitoria da UFPR. Deve haver outras pessoas como a moça da máquina de escrever. Liamir – oriunda dos salões elegantes da alta-sociedade – não quer passar pela vida sem conhecê-las. Tem muito óleo 40 para queimar. A gurizada vai adorar saber mais essa.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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