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 | André Rodrigues/Gazeta do Povo
| Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo

Dos seus 80 anos, acreditem, a gaúcha Maria Maciel passou uns 70 tentando entrar na escola. Quando conta por que diabos demorou tanto, tem quem se segure na cadeira, para não cair. Ela é engraçada. Seria boa animadora de auditório. Da primeira vez, ainda menina, chegou na porta do colégio levada pelo pai – ela e uma irmã que tinha perdido a mão num engenho. A professora mediu Maria de cima a baixo e disse ao pai que a levasse dali – tinha saúde demais para perder tempo com as cartilhas. A irmã ficou. Maria tomou o rumo da roça.

Quando casou, disse a si mesma: “é agora”. Avisou ao marido que queria estudar, no que ouviu um sonoro “não”, seguido de impropérios que bradam os céus. “Dizia que se eu aprendesse a escrever, não ia prestar, porque ia mandar cartas para outros homens”. Achou um desaforo, mas obedeceu. Até que o vivente se enrabichou por uma mulher mais nova e partiu sem adeus ou bilhete. Deixou-a com quatro filhos para criar e privada do consolo de assinar o próprio nome.

Com a prole crescida, estava quieta no seu canto – vendo a vida passar –, até ouvir falar que havia escolas noturnas para mulheres como ela, que perderam o trem. Foi atrás. “Tem vaga para criança?”, perguntava na portaria dos colégios. Arrancava risos para esconder a vergonha. Sempre tinha vaga, mas bastava se matricular para que as turmas fechassem, por falta de alunos, uma, duas, três vezes. Parecia praga. Imagine-a contando. Nem Mazzaropi nem Dercy Gonçalves fariam melhor.

Até que o destino largou do pé de dona Maria Maciel, a própria. Há dois anos ela faz parte do programa de Educação de Jovens e Adultos, o EJA, da Escola Municipal Boleslau Falarz, no bairro São Braz. “Por enquanto essa aqui ainda não fechou... ” (aplausos à veterana). Aos navegantes, informa que se diverte lendo letreiros de ônibus e reclames de lojas.

Eliane Leal Rosskopp Cunha, 32 anos, vivia no Mato Grosso e quase teve um treco quando o médico lhe deu uma notícia que parecia coisa de novela: “Você tem seis meses de vida”, disse à moça. Um compêndio de doenças saltava do bolso do jaleco. Começou a saga. Marido a tiracolo, veio atrás das “Clínicas”, para ver se aumentava o prazo de validade. Dormiu em albergue; se viu sem um mísero, até encontrar um comerciante que, do nada, ofereceu um quartinho de fundos ao casal e um emprego. “Tipo anjo da guarda, sabe?”

Doente, sem teto, entregue à caridade de estranhos, Eliane lembrou que se caísse dura, hoje, partia para a eternidade “sem as letras”. O passado lhe veio todinho na cabeça. Quando guria, o pai a buscava dentro da sala de aula e a trazia pela orelha para que se ocupasse do que interessava – o cabo da enxada. Aos 16 anos, cansada do peso das colheitas, decidiu casar. Foi feliz, até saber que estava perto da hora boa. Entre o sim e o não, disse sim. Safou-se. Um novo médico a presenteou com um delicioso “deixe disso menina”. Segundo consta nos anais da medicina, vai longe. Faz pouco tempo, encheu-se de coragem, passou a mão no telefone e ligou para o pai: “Ói, tô na escola, tá”.

Nos colégios do estado, em 2015, foram 90.064 estudantes de EJA. Num mundo perfeito, todos cuidaríamos deles – empresários, políticos, religiosos

Eliel Barbosa Fernandes, 41 anos, sempre quis aprender a ler, mas parecia mais fácil colocar um elefante dentro de um Fusca e catar papel na ventania do que conseguir. Uma meningite, em menino, lhe trouxe dificuldades que a maioria das escolas não estava disposta a suportar. Foi levando o desejo em fogo baixo. Até passar na frente da Escola Municipal Boleslau Falarz e dizer “vai ser aqui”. Puxou a manga da blusa de sua mãe, dona Anilva, e pediu para se matricular. Resposta certa.

Eliel divide a sala com Maria – a que tinha fama de fechar escolas – e com Eliane, aquela que foi desenganada. Com Emerson, que foi abandonado pela família; e Gertrudes, que voltou “porque a água bateu na bunda”. São 14 ao todo. No dia em que os conheci, liam um conto do paranaense Domingos Pellegrini. Contei-lhes que o apelido do escritor é Dinho, que sabe tudo sobre guerras, que pegou gosto pela leitura ao encontrar uma pilha de revistas O Cruzeiro. E que é galo de briga. “Briguento é, hum. Mande um abraço pro Dinho...” (risos)

Maria, Eliane e Eliel fazem parte de um grupo de mais de 2 mil pessoas, só nas escolas do município. Nos colégios do estado, em 2015, foram 90.064 estudantes de Educação de Jovens e Adultos. Num mundo perfeito, todos cuidaríamos deles – empresários, políticos, religiosos.

Seria de justiça. A turma da EJA é oriunda de uma das mais absurdas estatísticas brasileiras – descende dos 75% de crianças que começam o antigo “primário” e não chegam ao fim do ensino médio. Se o número não estiver errado, arrisca ser a maior máquina de exclusão do planeta. Mas chega de mágoa – já tem foguete saudando 2016 nas nossas janelas. Melhor fazer emplastro Sabiá com outro número, divulgado anos atrás, pelo sociólogo argentino Júlio Jacobo Waiselfisz, um homem que dedica sua ciência a entender o Brasil. Com base em tabelas, gráficos e quetais, concluiu que os jovens e adultos evadidos tentam seis vezes voltar à sala de aula. Seis.

Foi por pouco, dona Maria.

Esta coluna é dedicada a todos os professores que acolhem gente grande que se perdeu da escola. Saudações em especial às educadoras Maria Lídia Cruz e Márcia Hampe Mafra, da EJA da “Boleslau Falarz”. Que bonito é.

  • Alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Escola Municipal Boleslau Falarz, no bairro São Braz: encontro com um conto do londrinense Domingos Pellegrini.
  • A aluna Maria Gertrudes Antunes Lizardo, 45 anos. Passou a infância na zona rural e aos 10 anos começou a trabalhar em “casa de família”. O desejo de estudar veio quando se empregou uma unidade para adolescentes em conflito com a lei. Passou a querer mais.
  • A professora Márcia Hampe Mafra conversa com os alunos no último dia de aula: “Acho que todos os educadores deveriam passar pela EJA.”
  • A veterana Maria Maciel, de 80 anos. Desde a infância a escola fugiu das suas vistas. “Ela insiste todos os dias”, elogiam as professoras.
  • No centro, de amarelo, Eliane Leal Rosskopp Cunha conta a saga médica que a levou a pensar na escola. “Eu queria voltar”.
  • Maria, a professora Márcia Mafra, Eliel Fernandes, a professora Maria Lídia Cruz e Eliane Rosskopp, nos corredores da “Boleslau”.
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