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Tenho por princípio rejeitar todas as teorias sobre o estranho modo de vida dos curitibanos. Não passam de teses preconceituosas, sem base antropológica e empiricamente não comprováveis. Basta, por exemplo, nos reservar 15 minutos de atenção para destruir a crença de que não damos trela a estranhos. Quanto ao constante rabo de olho durante a conversa – deixe quieto: trata-se de um inofensivo reflexo condicionado herdado dos antepassados ou resultado de algum vento que bateu nas costas.

Indignado com a facilidade com que os forasteiros nos chamam de desconfiados e fechados, cheguei a convocar uma amiga, amabilíssima, a iniciar uma cruzada pela redenção moral da gente daqui. Fundaremos uma confraria. Ela, sorridente, falante, sempre de portas abertas, dona de uma voz maviosa – um verdadeiro canto da gralha-azul – será o símbolo da nossa civilidade. Graças ao nosso grupo, há de vingar em todo o território nacional a expressão "simpático como um curitibano".

Tenho cá para mim que o sotaque é o culpado de nos acharem "pouco dados". Nossa fala, que dó, não tem a doçura mineira, a brejeirice paulista, a fluência carioca, o encanto pernambucano. Nossos "ês" – ditos com ênfase operístico – podem desafinar e ter o efeito de um pé de ouvido. Mesmo assim, há dicções autóctones agradabilíssimas, como a da jornalista Valéria Prochmann e do livreiro Aramis Chaim. Adoro ouvi-los falar.

Dias desses, dois garçons – um gaúcho e outro cearense – me confidenciaram ter a impressão de que os fregueses estão brigando com eles: "EscuTE, moço, me traga o cardápio. Agora..." De fato, parece um pito. De fato, as­­susta. Um dos garotos jurou estar de malas prontas. Contei-lhe um ocorrido.

Reza a lenda que Miguel Fa­­labella criou a personagem Bozena depois de, em visita à capital, dar autógrafo a uma rotunda e severa "RUTE" – que se apresentou como se batesse continência ao Füher. Depois do susto, o ator se esbaldou no riso e deu o troco. É o que todos deveriam fazer. Disse isso ao garçom. "É o nosso jeitinho... Daqui a três anos você não vai querer morar em outro lugar."

Em Curitiba, defendo, não se deve ter pressa para travar relações sociais. As amizades custam, mas são para sempre. É preciso entender nossa parcimônia em escancarar os braços e o sofá da sala. Tudo aqui era mata fechada de pinheiros, lugar de passagem de tropeiros – muitos de maus-bofes. Vai saber quem é quem. Além do mais, tinha muito rio raso e feio, índios canibais e temperaturas polares. Mexe com o humor, né, por uns quatro séculos, como se vê.

A escuridão e o frio macularam nossa alma. Mas somos gente. Sabemos tudo sobre a vida do vizinho, mesmo falando muito pouco com ele. É praticamente um modelo de gestão. Por isso digo e repito: forasteiro, não desanime. Procure um curitibano para chamar de seu. Ele existe e põe a mesa do café da tarde esperando por você. Diante do chineque fresco, há de contar como o nonno e a baba desbravaram o Orleans e do seu sonho de Santa Felicidade. Falará os podres de uma família inteira – que não aquela em que nasceu – e o que pensa do metrô. Somos todos historiadores e urbanistas natos. Somos irresistíveis.

Em tempo, temos uma marca de nascença: o horror aos chamados dias lindos. Que é isso, companheiro? O pessoal da meteorologia chama manhã ensolarada e com elevação da temperatura de "tempo bom". Só se for para a fuça deles. Dias felizes são cobertos de nuvens, com chuviscos depois do meio-dia, seguidos de frente fria da Argentina e súbita "queda da temperatura no início da noite".

Aqui é assim, nego: o povo só se sente bem quando a luz é prateada. Não nos leve a mal: nossa fala é seca como o cinza da paisagem que nos aninha. Se o céu hoje ficar nublado, bom dia!

E bom carnaval, seja lá o que isso for.

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