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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

Tempos atrás, um texto do jornalista Marcelo Coelho me deixou arriado. Tratava da crise da crônica, esse gênero vira-lata. Cronistas teriam se tornado "relevantes" demais, uma confraria de sábios empenhados em decifrar as grandes questões do noticiário e, acrescento eu, modificar os outros, aos quais parecem não suportar. Ao adotar esses modos, nenhum deles mais se ocupa de falar sobre "o nada", assunto que consagrou Rubem Braga, o maior dos cronistas brasileiros. Sem mirar o cotidiano e tirar dele alguma graça, crônica vira outra coisa. E fim de papo.

A fala de Coelho me fez lembrar de um intelectual miseravelmente amaldiçoado, em especial nos cursos de Comunicação – o canadense Marshall McLuhan. Dos ensaios que escreveu, o que mais amo se chama Visão, som e fúria, trabalho que ajudou a cavoucar sua desgraça na academia. Nosso querido "Mc" achava bonito aquele monte de gente em torno do rádio e da televisão, recebendo informação, falando e comendo baldes de pipoca ao mesmo tempo. Julgava esse ritual doméstico um retorno ao costume tribal de ficar em roda da fogueira.

Com essa teoria dita "alienada", não demorou para que ele mesmo fosse atirado à fogueira, onde permanece ardendo em fogo brando. Afinal, precisamos citar o velho Marshall a cada vez que temos de dar crédito ao autor da frase "o meio é a mensagem", repetida quase tanto quanto o dilema de Hamlet. Por minha conta e risco, digo que o autor se empolgou tanto com os meios de comunicação, na década de 1960, porque viu neles um alento para o tédio que sentia. Chegou mesmo a escrever que "o mundo tinha se tornado insuportavelmente pedagógico", seu desabafo ante o porre do intelectualismo.

Convenhamos que em certos dias não há melhor remédio que abraçar um pacote de bolachas e encarar uma insana rodada de novelas. Sabemos que não seremos premiados por conseguir decorar o nome de todos os personagens de Salve Jorge. Mas essas rotinas que não valem "nada" podem fazer o maior sentido. Ponham na lista estender roupa no varal, dar um rolê com o cachorro, fofocar com um parente ao telefone... Regar samambaias. Essas atividades não fazem de nós homens renascentistas, mas também não é preciso avacalhar.

McLuhan sacou isso. Rubem Braga também, por isso o lemos com a volúpia com que devoramos uma bomba de chocolate de padaria. Não foram, por certo, os únicos defensores das pequenas grandezas do cotidiano. Seria covardia não lembrar aqui do antropólogo francês Michel de Certeau (1925-1986). Fui a ele apresentado tardiamente, pela jornalista Myrian Del Vecchio. E antes que alguém que tenha interpretações legítimas sobre o autor peça à direção do jornal que me ponha no pelourinho, por ousar tê-lo citado, informo que sou dele um leitor de aeroporto – desatento e insone. Um tipo que pula parágrafos e anota frases inspiradas.

Certeau nos redime desses tempos sombrios, que valorizam feitos extraordinários e reduzem a chulé o ato altamente simbólico de tomar café com chineque. Penou para concluir isso. Interessava-se por de tudo um pouco, incluindo os místicos do século 16. Diriam hoje que não era focado. Para ajudar, deixou a França para lecionar nos EUA. Quase um desertor, teve liberdade para suspeitar de um dos mantras do século 20: o de que o consumo e a mídia nos tornaram um bando de tapados.

Em vez de passivos, os anônimos são criativos, pregava Certeau, formulando a hipótese mais incrível depois da que explica a verdadeira origem dos bebês. Nesse momento, alguém está usando a inventividade – ainda que seja arrastar um móvel dentro de casa. Para ele, as pessoas comuns desobedecem. São indisciplinadas. Desafiam a produtividade. Viajam sem sair do lugar. Promovem revoluções na prática. O cotidiano, em vez de banal, é "a arte do fazer".

Não foi nada, não foi nada, depois de Certeau abrir a boca, seu João ou dona Maria não são mais os empregados da fábrica, mas inventores silenciosos de um mundo em miniatura. Nos seus microespaços, cozinham, conversam, fazem política, reordenam as relações afetivas, criam espaços de felicidade. O cotidiano "é o lado de dentro", dizia o autor. E a rua onde andam, um palco em que revelam o que pensam, não com discursos inflados, mas numa roupa, numa piada, num hábito maluco.

Se bem entendi, as crônicas das quais Marcelo Coelho têm saudade eram aquelas que conseguiam ver quão extraordinária é vida boba. O tal do "nada" é coisa pacas. Demorei, né. Fosse Rubem Braga, falava direto sobre as samambaias.

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