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 | Foto:Antônio More/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
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Todas as manhãs, na hora em que veste sua dolmã – a túnica branca usada pelos profissionais da culinária –, Alisson Jory, 24 anos, não consegue impedir uma lembrança. Há pouco mais de um ano, ele punha outra túnica, também branca, a usada nas liturgias católicas. Era seminarista da Arquidiocese de Curitiba – daqueles talhados a pilotar um altar. Só que não rolou. Hoje trabalha como confeiteiro na elegante Forneria Copacabana.

Na cozinha todos os funcionários sabem que o novato nas panelas foi quase padre, o que provoca um certo bururu. Enquanto acertam o corte dos mignons, os colegas não deixam de metralhá-lo com perguntas gastronômicas de altíssimo nível: “E aí, conta para nós como você se virava com a castidade?” Ele responde num tom clerical, mas sem mapas: “Sabe quando alguém é casado e decide ser fiel à sua mulher? Pois é a mesma coisa”. A explicação não convence, mas só faz aumentar a popularidade do sujeito com pinta de Buddy Valastro e poder de comunicação – uma das habilidades desenvolvidas em sete anos de estudos para chegar ao presbiterato.

Ou o guri seria padre ou cozinheiro. As piedosas torciam pela primeira opção

A outra é a pachorra para dar conselhos. Os desiludidos não se furtam de lhe pedir algumas gotas de sabedoria, mesmo enquanto flambam. “Você que ia ser padre, me diga o que faria se...” Mestre Jory tem fama de sempre acertar o ponto, seja um assunto no fogo alto ou de fogo brando. “Ele é uma doçura”, concordam seus companheiros de forno e fogão, no que a freguesia que ocupa as mesas do restaurante concorda.

Tivesse ficado no seminário, privaria a clientela de pelo menos duas iguarias que fazem a fama do cardápio. A primeira é uma fórmula turbinada de tiramisù. Rende ao chef aprendiz o maior dos prêmios: os suspiros concupiscentes dos comensais. A segunda, um exótico bolinho de aipim com caldo de cachaça, receita traficada dos caderninhos da mãe. É a glória. Moradora da tradicional Caximba, dona Deleuza De Conto hoje influencia delgadas glândulas gustativas nos rincões do Batel. Trata-se do intercâmbio da temporada.

É provável que a freguesia associe a Caximba apenas ao aterro sanitário que lá funcionou por eternos 21 anos. Injustiça da grossa. Alisson está entre os que defendem uma campanha reparadora do poder público. Slogan não falta: o bairro guarda resquícios da colonização italiana e polonesa – uma Curitiba que o tempo esqueceu; é irmã siamesa do Umbará das olarias; e agora, sabe-se, exporta pratos made in Caximba, capazes de provocar uma orquestra de lamber de beiços e estalar de línguas no “Copacabana”.

Os laços de Alisson com a culinária começaram aos 8, 9 anos, bisbilhotando os almoços preparados pela mãe. Logo sua fama gourmet extrapolou o cercadinho doméstico. Ao acompanhar Deleuza nas reuniões das Mensageiras da Capelinha, fazia as leituras, mostrava ter unção para a palavra. Depois, servia às senhoras um lanche – nada que levasse à luxúria: bolinhos simples e pães de queijo. Era o bastante para que palpites brotassem feito responsórios. Ou o guri seria padre ou cozinheiro. As piedosas torciam pela primeira opção. Diante da mesa preparada pelo menino prodígio, sabe Deus.

Aos 16 anos, sentiu-se chamado. Tinha uma pá de amigos e uma família de propaganda de margarina. Mesmo assim, despediu-se e foi para o Seminário São José, no Orleans. Estudou Filosofia, Teologia, fez pastoral no distrito da Rondinha. Planejava a ordenação. Até que se entristeceu. Rezou para exorcizar os demônios, sem sucesso. Rendido, deixou a túnica no cabide.

Abandonar um “estado de vida”, como se diz em moral, é tão ou mais difícil do que encerrar um casamento. O estado clerical e o religioso são polvilhados dos mais elevados propósitos humanitários. É tamanha missão que todo o resto parece reduzido a uma rotina miúda, como se um super-herói se visse condenado a vestir pantufas para assistir à Sessão da Tarde.

A experiência do chamado divino não tem paralelos – daí tantos abandonarem amores, tesouros para respondê-lo. Perguntem a uma freira, a um pastor, sobre o momento em que “ouviram a voz do vento”. Não estranhem vê-los entregues às mais pirotécnicas das emoções. Alisson segue a regra. De volta à vida laica, provou a amargura do reino perdido.

Tudo bem – os deuses da culinária vieram doidos em seu socorro, na figura das confeiteiras Schay Tokarski e Carolina Garofani, e do empresário Beto Madalosso, seus três descobridores. Ponha-se na lista a advogada Heloíse Moreira, a namorada. Difícil esquecer a túnica branca, ele admite. Mas é trajando dolmã que vê a alegria de quem se entrega, sem culpa, às delícias de uma sobremesa. “Minha missa é aqui.” Se impera o silêncio no restaurante – bom sinal: o que é bom a gente come rezando. Volta e meia se pergunta se o mundo fica melhor com um pouco de açúcar. Anda bem tentado a acreditar que sim.

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