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 | / Foto: Daniel Castellano / Arte sobre foto: Benett
| Foto: / Foto: Daniel Castellano / Arte sobre foto: Benett

Foi um show como tantos da dupla Zezé Di Camargo e Luciano. A arena apinhada confirmava os goianos no pódio de maior fenômeno brasileiro do showbiz. Nem para a Ivetinha tem. Pela milionésima vez, o coro formado para cantar É o amor alcançou as nuvens do céu. Até que Zezé interrompe o próximo número e pede a um jovem alto e retinto que suba ao palco. Chama-se Berthony Pierre, tem 32 anos e nasceu no Haiti. Ele aceita. “O que você quer cantar?”, pergunta. “Indiferença”, responde Pierre. E a música se faz – agora a três vozes: “Fala pra mim, diz a verdade / que mudou assim tão de repente / quero saber de onde vem esse medo que machuca a gente...”

Não – o haitiano Berthony Pierre não cantou com Zezé Di Camargo num teatro cheio, debaixo de aplausos, saindo dali direto para um contrato com a Som Livre. Quem dera. A exemplo de milhares, limitou-se a assistir a Dois filhos de Francisco. Acreditar que esse encontro possa acontecer é o que o mantém em pé, seis anos depois do terremoto que por pouco não reduziu seu país a pó. “Toda noite penso como seria estar com Zezé e Luciano. Imaginar é um remédio, para eu não desistir de ir até o fim. Preciso descobrir o que existe depois desse sonho”, diz ele, ao pé da casa onde morava até ontem, na Rua Natal, 106, no Cajuru, em companhia de uma dezena de conterrâneos.

Esse é um dos seus raros momentos poéticos. Berthony é um artista com alma de operário. Assim como a imensa maioria dos haitianos, tem urgência. Fala rápido. É tarefeiro. Fácil entender: soma sete meses de agônico desemprego, mas longe dele se tornar um errante. Recusa-se a trocar o Brasil pelo Chile, o Chile pelos EUA, e assim por diante, de modo a virar um nômade, que vaga pelo mundo. Quer ficar aqui. E, para ficar, não pode dar bobeira. “Quando alguém me reconhece e me cumprimenta na rua fico com a certeza de que não posso recomeçar sempre. Tem de dar certo. Pierre precisa de um agente. Quem investir vinte reais em Pierre investe no futuro. Sou uma mercadoria à procura de um empresário”, propagandeia.

O pai de Pierre era pastor batista em Gonaïves. Filho único, o guri cresceu em roda do templo, atraído, sobretudo, pelos negro spirituals, nos quais cedo ganhou direito a solo. O talento para o ofício de cantor apareceu antes do primeiro fio de barba. Adolescente, passou a ser disputado para animar casamentos – em dupla com um primo. Causavam. Um pouco mais, veio o convite para integrar o grupo Gospel Freedom, famoso naquelas bandas do Caribe. Tenor, arrebanhava plateias ao cantar a capela, uma de suas especialidades.

Berthony aprendeu nossa língua com Zezé Di Camargo e Luciano, ao pé do rádio, na solidão do exílio

Paralelo, entregou-se às jujubas. Amava a ginga das melhores kompas – o samba com merengue de lá – e o minimalismo da chanson francesa, em especial a feita no Canadá. Bryan Adams – que também ralou para falar português – figura entre seus preferidos. Evoluiu. Entregue ao rebolation ou a bordo de um infalível tema romântico – transformou-se, de modo a não parecer sobrar nada do sujeito acanhado, de origem rural, dado a ficar pelos cantos, pagando para não abrir a boca. Fosse descrito por uma mestra da escrita como Janet Malcolm, por exemplo, ela diria que Berthony Pierre, quando canta, se assemelha ao menino mais feliz da turma – aquele de quem todo mundo quer estar perto. Destacaria que tem o porte e a altivez de quem parece ter um par de galgos a seus pés.

Foi assim até que os deuses se esqueceram do Haiti, enviando ao país pragas em série. A Record seria incapaz de reproduzi-las em estúdio. À semelhança de outros milhares, debandou para a República Dominicana, depois rumou até Manaus, fugindo rumo a Pato Branco – no oeste do Paraná – até desembarcar em Curitiba. Aqui, permitiu-se tirar o passado da mochila, e cantar de novo.

O imigrante que construiu fogões, amarrou cabos de internet, carregou caminhões e fez segurança nas lojas Marisa decidiu deixar de se comportar como um cão perseguindo um carro. Um dia se apresentou na Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, onde arrancou os primeiros suspiros da audiência e elogios à lindeza do “português com sotaque franco-créole”. De outra feita, fez bonito num congresso de direitos humanos. E na Assembleia Legislativa. E num bar perto do Terminal Guadalupe, onde ganhou cachê de R$ 200. Tornou-se a voz dos haitianos que vivem na capital e na Região Metropolitana. Arrancam-no da cadeira durante encontros dos expatriados, aqui e ali. Angaria fãs, a exemplo do ativista Igo Martini, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos, e do fotógrafo Brunno Covello.

É sagrado –sempre que se apresenta, primeiro Berthony canta o hino do Haiti, no gogó, sem acompanhamento. Depois fica por conta dele o arrombar da festa. Arromba. O recatado povo do Haiti mostra que tem molejo nas cadeiras. As gurias deixam de se comportar como gueixas – dois passos atrás dos homens – e sobem ao palco para cortejá-lo. Os dentes separados lhe dão ar juvenil. Os olhos de mormaço o transformam em galã de quadrinhos. Por pouco não há gritos. Mas é inútil tentar seduzi-lo: Berthony Pierre está em transe musical.

Não perguntem o momento exato em que o cantor escutou Zezé Di Camargo e Luciano pela primeira vez. É de menos. Importa contar que aprendeu nossa língua com a dupla, ao pé do rádio, na solidão do exílio. Ouvia com devoção as músicas da dupla, Indiferença entre elas. Nos seus delírios de que farão um show juntos, vai agradecê-los, de joelhos. É verdade que teve também outros professores – Paula Fernandes, Fernando & Sorocaba, Chrystian & Ralf e até Lulu Santos, a quem espera, breve, poder apertar a mão. O cantor haitiano garimpa uma vaga no The Voice Brasil. Quando conta, os outros é que sonham adoidado. Escuta profecias do tipo: “Amigo, quem vai virar a cadeira para você há de ser o Carlinhos Brown. Já pensou?” Tomara dê briga de foice para ver quem fica com Pierre. E que vença o Michel Teló, que o deixará a um grau de separação sabe de quem, né.

A vida é sonho. Creiam.

  • Berthony Pierre na estrada de ferro, no Capão da Imbuia, perto da república haitiana onde vivia até semana passada.
  • Imigrante haitiano aprendeu português ouvindo música sertaneja. Também canta Lulu Santos. E é fã confesso de Bryan Adams.
  • Pierre, como gosta de ser chamado, trabalha feito um operário para se firmar como cantor. Ele é a voz da comunidade haitiana de Curitiba.
  • Berthony trabalhou em fábrica, foi carregador, e atuou na função de segurança das Lojas Marisa. Ao cantar para os patrões, ganhou entusiastas em apoiá-lo. “Invistam vinte reais no Pierre”, diz.
  • Berthony Pierre aprendeu a cantar no coro de uma igreja batista, em Gonaïves, sua cidade natal, no Haiti.
  • “Onde me chamarem para cantar eu vou”, diz o artista que se tornou presença obrigatória em encontros de haitianos. O Hino do Haiti, a capela, é número obrigatório.
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