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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

Fazia tempo, muito tempo, que eu não ouvia com atenção o Hino de Curitiba. Nosso reencontro foi nesta semana, num bate-papo com os associados do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR). Sim, aquelas respeitáveis cabeças brancas sabem de cor os versos de Ciro Silva musicados por Bento Mossurunga. Entoam cada estrofe com a empolgação de combatentes. É bonito de ver.

Calculo que entre a cantoria de dias atrás e a última vez que tive contato com o hino tenham se passado quase quatro décadas. Apesar da distância, a ida ao IHGPR foi o bastante para rever, nítido como numa tevê de plasma, as tias Diana, Edil e Marina – do antigo primário –, paramentadas de avental branco, ensinando o significado de palavras que mais pareciam desaforos proferidos pelas vizinhas quando nossa bola cravava suas vidraças: "ridente", "resplande", "altiva", "faceira".

Lembro ter atinado a uma palavra em particular – "palpita". É gostosa. Parece fazer toc-toc. Por causa dela, guardei o verso "Pérola deste planalto, toda faceira e bonita, na riqueza e na opulência, vive, resplande, palpita". E assim segui pela vida, repetindo uma única frase manca do hino do lugar onde nasci.

Ainda guri, morava em Rio Claro, no interior de São Paulo, e um professor de inglês, ao saber de onde eu vinha, disse que Curitiba era tão feia que devia se chamar "Bundiritiba" [risadas da turma]. Magoei. Fiquei achando que aquele infame especialista no verbo to be não tinha gostado das nossas escorregadias ruas de paralelepípedos, das nossas calçadas olimpicamente irregulares. Ou quem sabe nossas louras o tenham mandado catar pinhão em Tomás Coelho, daí o veneno.

Mas que nada. O homem nunca tinha pisado no solo sagrado dos pinheirais. Imaginou como era a cidade lendo as obras de Dalton Trevisan, que devorava com o mesmo apetite devotado às pamonhas, como deduzi ao prestar atenção em sua imensa barriga. Fosse a realidade um filminho da Sessão da Tarde, em desagravo cantaria para ele o verso que sabia. Mas eu era ruim demais em inglês para fazer "fusquinha", como dizem os paulistas.

Vieram outros sarros, em outros idos, sempre boas ocasiões para lamber as feridas ao som do trecho decorado no grupo escolar. "Pérola deste planalto..." Um dos achincalhes sofridos pelos pobres curitibanos é clássico. Tem sempre um engraçadinho pronto para repetir a boutade atribuída a Millôr Fernandes. Diz algo como: Não se sabe o significado da palavra Curitiba. O que se sabe é que "ritiba" significa "do mundo". Confesso que acho divertida. O Millôr podia tudo.

Além do mais, com folga, o mais detestável dos bullyings municipais é ter de ouvir aquele jingle de excursão – "Se você quiser entrar no céu..." – adaptada, digamos, à imagem pouco afável dos nascidos nessas terras frias: "Se você quiser conhecer gente metida, é só chegar, lá em Curitiba". Por essas e outras, evito viagens a Aparecida com a turma da paróquia. Sempre tem um ressentido a bordo, prestes a puxar o coro. Metidos? Capaz... Temos o nariz trancado.

Cá entre nós, o Hino de Curitiba sofre de um pequeno distúrbio bipolar. "Ridente paisagem"? Menos, né. Como hinos não nascem para reportar, antes para idealizar, relevemos. Até porque a música se redime ao trazer uma expressão que cheira a naftalina, mas cujo sentido serve como luva para os dias de hoje. Trata-se, não por acaso, de "palpita". Explico.

Os urbanistas entenderam que vale mais descobrir o que a população gosta numa cidade do que aquilo que não gosta. Ao garantir o funcionamento do que Gaston Bachelard chamou de "espaços amados", o resto vem por acréscimo. Tenho cá para mim que até sofremos um impacto no humor provocado por renites severas, mas queremos bem muitos endereços do nosso mapa. Lutaríamos para mantê-los. A palavra Curitiba faz milhares de corações baterem mais forte. Palpita. Tomara os que se sentem à parte possam um dia dizer o mesmo.

Ah, antes que eu me esqueça, professor de inglês, "Bundiritiba" é a sua cara.

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