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 | Antônio More/Gazeta do Povo
| Foto: Antônio More/Gazeta do Povo

Coisa de dois anos, o cineasta Elói Pires Ferreira – um curitibano do Portão – deu início a um projeto de tevê, digamos, fadado a ganhar o fundo das gavetas. Era uma série, com a ambição de competir com as produções da hora. O tema, guris e gurias pobres, abandonados e/ou em conflito com a lei. Escreveu o roteiro, filmou um piloto, tendo como ambiente o SOS Criança – um serviço de proteção à infância anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA.

Como de costume a cada vez que se lança num de seus sonhos cinematográficos, Elói chamou alguns amigos, conhecidos e formadores de opinião para uma pizza, seguida de uma sessão privé do novo trabalho. Queria saber o que achavam. Antes mesmo que os créditos finais sumissem na tela – e que alguém se lançasse com gula à última fatia de uma quatro queijos com bordas –, exigiu de todos que se mostrassem sinceros. Foi atendido, com impiedosos baldes d’água fria.

O “círculo de confiança” lembrou que os tempos do SOS Criança – quando a piazada se amarrava no cheirinho-da-loló e pedia dinheiro nos sinaleiros – soava como um conto de fadas perto do que nos reservaram os anos 2000. O crack pintou as cidades de cinza. Os dados cada vez mais gritantes sobre abuso e exploração sexual, a cooptação pelo tráfico, a orfandade – para citar algumas mazelas – mostraram que a realidade era uma nada mole vida. Além do mais, seria uma traição involuntária ignorar os conselhos tutelares, que há mais de duas décadas se ocupam da proteção integral à infância. Se fizesse uma série, que fosse sobre os conselheiros.

O cineasta bem que tentou reduzir a pó aquela legião de opositores com barriguinhas satisfeitas. Poderia adaptar o roteiro, por exemplo, no que foi silenciado mais uma vez: restava saber quem, afinal, gostaria de seguir todas as noites – entregues às delícias do sofá – a maratona insana de conselheiros tutelares enfronhados em zonas de tráfico, às voltas com padrastos estupradores e mães negligentes, tendo de colocar numa Kombi meninos aos prantos, rumo aos beliches numerados dos abrigos.

É verdade que muitas séries de tevê exploram cenários mais cruéis que esse, mas com a vantagem de não terem crianças vitimizadas no centro da trama. Mostrar pequerruchos ou animais sofrendo – vaticinou-se – equivaleria a soltar um enxame de abelhas no encalço do público. E com essa fala profética nos despedimos da consulta, trocando o desconforto pelo consolo de qualquer bobagem de salão. Rimos. Nesse quesito, com os brasileiros, não há quem possa.

Diante de uma realidade difícil de tragar, nós nos imunizamos, nos atiramos à segurança da vida privada

A série de tevê do Elói foi para a fogueira, mas aquela noite indigesta ainda não acabou. As certezas ali afirmadas andam diluídas por aí, fazendo lembrar a máxima expressa numa antiga peça de teatro do genial Fernando Kinas: “tudo o que você sabe está errado”. Os telespectadores não mudariam de canal apenas por não suportarem se entreter com o sofrimento de um garoto metido em havaianas. Mudariam porque estamos afundados numa maré de escapismo. Hoje, uma lista com os filmes, livros, novelas e reportagens que se ocuparam de discutir as mazelas da Terra Brasilis seria, sobretudo, uma lista de fracassos retumbantes de audiência. Há cada vez mais bichinhos nos chaveiros, adultos depilados e um insuportável infantocentrismo que outra coisa não deve ser senão nossa recusa em crescer.

Uma boa tese para esse fenômeno bebe na fonte da ensaísta Susan Sontag: “não estamos insensíveis, estamos impotentes”. Na impotência, nos entupimos de chocolate. Não é crime nem pecado querer voltar ao passado ou latir a cada vez que alguém ameaça questionar o direito absoluto a só ter satisfações. Mas é uma pena. Talvez a razão esteja com o filósofo germânico Peter Sloterdijk. Diante de uma realidade difícil de tragar, nós nos imunizamos, nos atiramos à segurança da vida privada, ao lado dos nossos pares. Num mundo inabitável, fazemos casas pequeninas onde nutrimos medos e roemos ressentimentos disfarçados de cultura.

A propósito, seria um refresco se alguma editora relançasse o necessário O declínio do homem público, de Richard Sennett. Que fosse adotado nas escolas. Indicado pela misteriosa Elena Ferrante. Disputado a tapas nas livrarias, para encontrar em alguma página por que diabos demos de brincar de fazer de conta. Somos melhores quando ocupados da coisa pública – ou “do outro”, caso queiram. A temperatura do corpo sobe. Fazemos sinapses. Ficamos mais inteligentes e sedutores, feito os gregos, quando se metiam em suas ágoras e arenas. Que saudade (risos).

***

Desculpem o disco riscado, mas uma leitora dileta, a professora Guilhermina Cavalli, diz que gosta, neste espaço da Gazeta do Povo, de ser apresentada, a cada semana, a um novo personagem. Ela tem razão. O pacto editorial dessa página é falar de gente, com os devidos cuidados. Reproduzo aqui o que prega a jornalista peruana Gabriela Wiener em seu desconcertante livro de reportagens gonzo Sexografias. Não vale fazer “turismo de vidas, tratando pessoas como simpáticos freaks que lhe abrem as portas do seu mundo exótico”. Não havendo essa possibilidade, melhor calar.

Hoje, vejam só, queria lhes apresentar a conselheira tutelar Jussara Gouveia – um das pessoas mais admiráveis listadas numa agenda profissional de 178.382 caracteres – e o conselheiro Roger Abade. Ela da Regional Pinheirinho, ele da Regional Cajuru. São bambas. Devia apresentá-los ao Elói Pires Ferreira, o cineasta. Quem sabe desenterrem juntos a ideia de uma série de tevê.

A segunda opção seria a população de rua que vive numa moradia social da prefeitura, no Campo Comprido. Foram duas-três visitas, garranchos e mais garranchos com histórias feitas para furar nossas bolhas existenciais, como, quem sabe, diria Peter Sloterdijk, o filósofo. E pensar que foram os 1,7 mil mendigos de Curitiba os pauteiros de nosso estranhíssimo 2016. Reparou? Permitam-me dizer que alguns deles vivem atrás das portas mostradas na foto que ilustra essa página. Proponho brincar de imaginar quem eles são – segundo dizem, imaginar o outro é o primeiro gesto para conter a tirania.

É o que tem para hoje.

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