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 | Ivonaldo Alexandre / Arte Felipe Lima/Gazeta do Povo
| Foto: Ivonaldo Alexandre / Arte Felipe Lima/Gazeta do Povo

Para finalizar, pêssego com nata, salada de fruta encharcada no guaraná Antarctica. Suprema felicidade

A socióloga Maria do Carmo Marcondes Brandão Rolim, 65 anos, nunca foi uma contumaz frequentadora de espaços gastronômicos. Na meninice, lembra de almoçar no Restaurante Zacarias, na companhia dos pais, em vindas da Ponta Grossa para compras e consultas médicas em Curitiba. Casada e com filhos, fazia apostas seguras no tradicional Madalosso, em Santa Felicidade. Risoto, franco e polenta, estava de bom tamanho.

Se lhe dissessem que havia estudiosos de fina cepa, empenhados em dissecar os hábitos à mesa, por certo declinaria da conversa. Fiel ao passado de resistência estudantil durante a ditadura militar, preocupava-se em lecionar na escola pública – a sua era o prestigiado Pio Lanteri, no Uberaba – e em resolver o drama da favelização. No final dos 1970, foi para o Rio de Janeiro em busca de referenciais teóricos para entender o avanço das ocupações irregulares na capital paranaense. Gabaritou. Sua pesquisa é um marco no assunto e poderia ter continuado não fosse encontrar pelo caminho o historiador Carlos Roberto Antunes dos Santos (1945-2013).

Aconteceu no doutorado em História da UFPR, na década de 1990. Debaixo dos ecos da transdisciplinaridade, Maria do Carmo se permitiu temperar suas heranças de esquerda com os molhos da antropologia e as pimentas da história da alimentação, terreno no qual Antunes despontava. Se Maria do Carmo se sentia traindo os princípios da Revolução Cubana, sossegou ao ler um artigo no qual o jornalista Aramis Millarch conclamava alguém para falar sobre os bares e restaurantes de outrora. Estudar a Gruta da Onça – onde doidivanas juram que Che Guevara pisou, à paisana – era para ontem.

Deu no que deu. Com a tese Gosto, prazer e sociabilidade: bares e restaurantes de Curitiba, 1950-1960, defendida em 1997 na UFPR, a socióloga se tornou a primeira orientanda de Antunes a botar o pé na calçada e bater ponto na frente de restaurantes e quetais, em busca de informações. Fez de garçons cansados de viver seus nobres entrevistados. “Saía com o gravador a tiracolo, aquele que tem de virar a fita, lembra?”.

A academia não foi mais a mesma depois dessa rebeldia. Um sem número de botecos, restaurantes e padarias de Curitiba e de fora dela deixaram o posto de suave recordação da vovó criancinha ou do tio bebum e se tornaram escritos que nos ajudam a saber quem somos. Um botequim, pé sujo que seja, é cenário de mudanças de comportamento, experiências culturais, embates políticos, o diabo. O nova onda venceu algumas resistências marxistas – centradas nas tiranias do mundo do trabalho – e botou para quebrar, sem culpa, investigações sobre o Bar Palácio, o Restaurante Bolonha e a Padaria América. A contida Maria do Carmo dá uma folga e se assume uma pioneira. Os que não gostam, que chupem o dedo – quem não tomou sorvete na Confeitaria Guairacá, não viveu.

A tese fez barulho. A imprensa em peso foi atrás da doutora que estudava o Bar Cometa e o Gruta Azul – para citar dois dos 31 espaços que vasculhou, com a energia de um boêmio profissional. A guria que almoçava vez em quando no Zacarias mal podia imaginar que colocaria os cotovelos em tantas mesas e que se tornaria depositária de uma pá de memórias, algumas mais preciosas do que as encontradas nos álbuns de família.

Há pouco, os historiadores Juliana Reinhardt e Victor Graciotto decidiram tirar da sombra a contribuição de Maria do Carmo. Montaram uma exposição na Casa Romário Martins, Largo da Ordem, com uma síntese da empreitada concluída quase 20 anos atrás. Tem obtido êxito, não raro com a própria autora servindo de guia. “Venho aqui de vez em quando, observar. Estou pasma com o interesse do público”, festeja, vacinada contra o tempo em que, mesmo sendo uma bamba na obra de Pierre Bourdieu, recolhia caras de desdém quando falava de sua pesquisa. “Coisa menor? Eu me convenci que o cotidiano não tem nada de menor.”

O estudo, disponível na internet, não nega fogo, nem o brando, nem o baixo, e vem à baila nesse momento em que milhares de brasileiros se entregam à delícia da temporada – o livro-reportagem A noite do meu bem, de Ruy Castro. Trata do samba canção, mas também dos picadinhos servidos nas madrugadas das boates cariocas dos anos 50, providenciais para que os bebedores de uísque conseguissem chegar a salvo em seus apês.

Quanto a Maria do Carmo e sua festa de Babette, primeiro oferece detalhes sobre o cardápio – algo caseiro – que fez a cabeça dos curitibanos que ouviam Frank Sinatra na vitrola e Nhô Belarmino no rádio de válvulas. No pós-Guerra, comer fora se torna um atestado de civilidade – mas o cardápio tinha de ser uma extensão do que mamãe fazia no forno e papai na churrasqueira. Exceção, apenas para o estrogonofe, que alcançou sua glória naquele tempo, até ser nivelado à banalidade de um bife com cebolas.

Bisteca com virado à paulista, dobradinha, feijoada, bolinho de arroz e até vatapá se repetiam nos cardápios, algo espartanos diante dos requintes gourmets de agora. Some-se a vitela brasileira, posta, língua, bife a rolê e, tchan, a invenção do século, os sanduíches do Triângulo e do Mignon, além do camarão à Marta Rocha, claro. Para finalizar, pêssego com nata, salada da fruta encharcada de guaraná Antarctica. Suprema felicidade.

Paralelo ao que deixava contente a barriguinha dos comensais, salta nos escritos de Maria do Carmo o fato de que cada um desses 31 espaços conferia identidade a seus fregueses. Futebolistas e jogadores iam no Buraco do Tatu. Políticos, no Vagão do Armistício. Nos anos dourados, era para graúdos o happy hour no restaurante do Hotel Moderno, na XV (covardemente descaracterizado). Quem não estava podendo, botava a melhor roupa mesmo assim e batia ponto no Bar Paraná, entregue ao consolo de uma sopa húngara, seguida de uma das melhores batatas fritas do pedaço.

Para as mulheres, em geral, lenha. Não podiam trocar carícia com o namorado na soberba Confeitaria Iguaçu, na hoje devassa Praça Osório. Em restaurantes em geral, moças só entravam acompanhadas da família – se quisessem se perder, que fossem à Boate Marrocos. Para jornalistas, dureza também. Tinha quem fechasse matéria em mesa de bar. Se radialista, dia seguinte recomendava aos ouvintes “aquele prato i-nes-que-cí-vel”, agradecimento pela boca livre, garantia de que comeria bisteca naquela noite. Era isso ou chouriço.

  • Maria do Carmo Brandão Rolim na exposição produzida a partir de sua tese de doutorado, defendida em 1997: de lá para cá, estudos sobre alimentação em espaços públicos ganhou tradição na academia.
  • Os poucos livros disponíveis, à época da pesquisa, e recortes de jornal garimpados pela pesquisadora: imprensa era praticamente a única fonte disponível antes da tese de Maria do Carmo ser defendida.
  • No detalhe da exposição, sua excelência, o garçom. Eles e os proprietários deram depoimentos à pesquisadora, não sem estranhar o interesse por um tema até então marginal.
  • Detalhe da mostra montada pelos historiadores Victor Graciotto e Juliana Reinhardt.
  • Na foto, o centenário Bar Stuart, com folga o mais lembrado em se tratando da Curitiba antiga.
  • Hábito de comer em restaurantes mexeu nos costumes, ditou moda e estabeleceu identidades entre os frequentadores.
  • Tese abriu caminho para inúmeros outros trabalhos - a exemplo da história da Padaria América, de Juliana Reinhardt, e do Bar Palácio, de Mariana Corção.
  • Maria do Carmo na Casa Romário Martins, onde exposição faz síntese de pesquisa publicada na década de 1990, com orientação do historiador Carlos Antunes dos Santos.
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