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 | Foto: Jonathan Campos – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Jonathan Campos – Arte: Felipe Lima

Não passa um Natal sem que me batam as saudades do escritor Valêncio Xavier – companheiro de uma década nas lides do jornalismo. Lembro bem. Durante a maior parte do ano, o autor de diabruras como O mez da grippe e Minha mãe morrendo... mostrava predileção por histórias macabras – de cabeças cortadas a amores bandidos. Mas bastava dezembro mandar notícias para que ele virasse "uma moça", como se dizia, desdobrando-se em delicadezas de papel crepom.

Uma de suas façanhas era sair à cata de entrevistas com Papai Noel. Adorava. Ao voltar para a redação, falava dos velhinhos de aluguel com tamanho entusiasmo que o julgávamos vítima de alguma febre tropical. Em verdade, sabia como poucos retratar os anônimos que se escondiam por trás dos cetins vermelhos. E tinha carinho divino pelos "pés raspados".

Naqueles dezembros, Valêncio se ocupava de escrever sobre os desvalidos, de modo a nos causar aquela ponta de dó que não pode faltar a um bom conto de Natal. Suspeito que em menino tenha sido leitor de Charles Dickens, John Steinbeck, William Faulkner. Um desses seus textos mais tocantes é o conto A vendedora de fósforos – feito num dia em que lhe "baixou" o Hans Christian Andersen. Saiu publicado num 25 de dezembro. Tinha a delicadeza de um cartão vindo da Europa, salpicado de brocados e falsos floquinhos de neve.

Penso que o escritor adoraria ter conhecido a copeira Sueli do Rocio Cuman. A vida dessa mulher é uma fábula brasileira. Nasceu em família grande e sem posses. Mais velha da escadinha de sete irmãos, ajudou a criá-los, sem dar um pio. Aos 10 anos, foi dada como empregada em casa de família. Lavava, passava, cuidava de mais crianças, até ela mesma ter as suas. Não guarda sombra de mágoas. Só guarda mesmo é uma tristeza doída ao pensar nos pequenos que chupam o dedo na Noite Santa. Não lhe peçam para explicar – é um sentimento que está guardado lá dentro.

Em 2000, Sueli partiu para a ação. Arrumou uma caixa de papelão bem grande, passou-lhe um laço de fita e colocou no hall do Hospital Santa Cruz, onde é servente no setor de Pediatria. Num cartaz, pediu a doação de brinquedos quebrados. Deu certo. Tia Su, como é chamada pelos confrades, ganhou muita boneca descabelada. Mandou-as para o tanque, passou-lhes um pente e lhes pôs roupa nova. Depois se vestiu de Papai Noel, preparou cachorro-quente para levar e se mandou para onde vivia a petizada à espera do Natal. Sabia bem o caminho.

Viu que era bom, o que bastou para que repetisse a receita, anos a fio: a caixa no hall, a fantasia alugada, a festa nas vilas de lá longe. Até que Sueli virou um case de sucesso do mundo corporativo. O Hospital Santa Cruz adotou a ideia, batizou-a de "Doce Natal", mobilizou pessoal, botou camisetas, montou kits. O marketing cuidou da logística, ou coisa assim. A copeira já chegou a atender 2 mil crianças. Na última semana, uma leva de 40 funcionários do Santa Cruz a acompanhou até os rincões do Sabará, na CIC.

Os colegas ajudam nas filas, dão oficinas de cupcake, mas acima de tudo vão a cafundós que nem sabiam existir, onde abraçam as crianças de Marré desci, qual nas cantigas de roda. Em tempos idos, chamavam esse fuzuê de alienação. Mas o mundo ficou tão complicado dos tempos da vovó para cá que só resta reconhecer que é o que se pode fazer.

Quanto a Sueli, nas semanas que antecedem ao Natal seu nome é mais ouvido nos corredores do Santa Cruz que o do presidente da instituição, Hamilton Leal Júnior. Ela fica que não se aguenta. Seus voluntários camelam para cumprir os horários, pois tia Su tem lá seus caprichos. "Comigo é padrão hospital", avisa, sem desgrudar da sacola em que guarda a veste do Noel. Pelo que se sabe, todo mundo espera vê-la pilchada, das horas a mais divertida.

Explico – tem sempre uma criança que desconfia daquele Papai Noel de voz fina, andandando às passadinhas. Safa, Sueli sai toda vez com a mesma frase: "Ô, ô, Papai Noel tá é gripado, ô, ô..." Vento encanado não poupa ninguém, nem essa mulher que não faz o tipo coração mole. "Aguento firme, sem choro." Pelo menos até chegar em casa, no São Braz, e tirar a barba que não lhe cai bem e deitar no sofá o script do "Doce Natal". O que pensa nessa hora ninguém sabe. Talvez soubesse o Valêncio Xavier, que veria em Sueli sua linda vendedora de palitos de fósforos.

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