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 | Henry Milleo/ Gazeta do Povo
| Foto: Henry Milleo/ Gazeta do Povo

A aposentada Anair Gomes, 57 anos, teme sentir falta de ar a cada vez que lhe perguntam “onde é que a senhora mora?”. A resposta, comprida como uma ladainha, exige pulmões. “Sabe onde fica a Vila Santa Rita? A do Tatuquara. Perto tem o loteamento Rio Bonito, no Campo de Santana – pros lados da Caximba. Lá mesmo. Para baixo do Rio Bonito tem a Vila Lambari.”

A explicação tricotada por Anair e pelos outros nunca serviu para alçar a Vila Lambari, digamos, à fama de comunidades como o Xapinhal ou o Sabará. De acordo com depoimentos, vê-se por ali as mesmas 1,2 mil pessoas de sempre, chegadas ao longo de uma década, por força dos reassentamentos ou do andar da fila da Cohab. Poucos forasteiros arriscam uma visita – pelo imperativo de não haver no Lambari os regalos do Salão Marly, Subway, Boticário, Madero, Nissei – ou a Casa do Pão de Queijo. Além do mais, bate o medo de não conseguir voltar. Quando chove, o que estava quase parado fica parado de vez. Os lambarienses se sentem os mais isolados dos curitibanos, superando nesse quesito os condôminos do Ecoville.

De um mês para cá, contudo, súbito a Vila Lambari saiu do anonimato. Aconteceu assim que o Ippuc anunciou que vai fazer um conjunto habitacional brotar do chão naquelas divisas. A vilinha de 300 casas – 20 delas erguidas com steel frame (estruturas de aço leve) vai inflacionar. A seu lado serão criadas 4,7 mil moradias para 20 mil pessoas. Prevê-se um local sustentável. Uma fina estampa não alcançada pela capital desde a implantação do Bairro Novo. E eis que interessados em urbanismo, habitação e em gente de modo geral deram de se perguntar “Lambari?”

Fosse feita uma pesquisa, arrisca que 80% responderia saber mais da bomba da King Jong-un do que das intenções do Ippuc para a redondeza

A Vila Lambari fica ao Sul de onde Curitiba acaba. É um baixio na bacia do Rio Barigui, rico em matéria-prima para as olarias e para as solas de sapato – o barro. Se as contas estiverem certas, só no entorno são sete extratoras. Tem cavas. Em tempos idos, uma delas era usada para banhos de piazada, não raro seguidos de morte. Como havia lambaris, ficou o nome. Mas isso é passado. Os terrenos alagadiços foram quase todos aterrados, em parte com a ajudinha das caliças da construção civil, despejadas pelos caminhões que circulam sem pudores. As sobras formam uma praia de tijolos e restos de cimento, em especial na orla do Rio Lambari, assim chamado, mesmo sem existir.

Mas não tomem a modesta Lambari por um logradouro triste, destituído de atrativos e belezas naturais. O que mais ofende é ouvir os vizinhos do Rio Bonito se referirem “ao pessoal lá do brejo”. É verdade que a vilinha tem uma única quadra asfaltada, na Rua Nílson Lopes, mas chupem o dedo: dali se pode ver a Reserva do Bugio. É um paredão verde. Ninguém no Batel goza de tamanho privilégio. É certo que tem apenas quatro mercadinhos, que vendem refrigerante Simba, mas o povo da vila fez de terrenos enlameados um cinturão de hortas comunitárias, férteis para a cana-de-açúcar, o ingá, couves e girassóis. Basta descer a escadinha cabocla cavada na terra para ver a prova inconteste do ambientalismo vileiro.

A vila, some-se, é um pequeno estado laico. Para espanto geral, essa periferia não tem um templo evangélico em cada esquina – apenas um terreno doado para uma futura igreja católica. As casas podem ser minúsculas, 37 metros quadrados, em média, mas são aquelas moradas sonhadas. Não há família que não tenha na sala uma tevê e ao lado dela uma pilha de sacos de cal. Além do mais, não existe favela no “Lambari”. Somando e dividindo tudo, conclui-se que o problema é ser um projeto inacabado, assunto que deixa os moradores nos cascos.

O povo da vila se sente marido traído. Fosse feita uma pesquisa, arrisca que 80% responderia saber mais da bomba da King Jong-un do que das intenções do Ippuc para a redondeza. Os outros 20% repetiriam uma piadinha bem tiririca: “Pode vir o tal do bairro, desde que o ônibus chegue antes”. O grau de satisfação é “zero”.

Quando se mudaram para lá, vindos de ocupações como Panelão, no Umbará, os recém-chegados acharam que teriam a sorte parecida à da turma de reassentamentos (públicos) como o Monteiro Lobato – ali perto, do qual a Lambari é um apêndice. Ou que se desenvolveriam a passos largos, a exemplo do Rio Bonito (privado), hoje uma espécie de cidade dormitório para mais de 30 mil almas. Só que não.

Não veio a pavimentação. A única pracinha se resume a um campinho de pelada improvisado na Rua Loli Rodrigues, um impedimento para que emerja um glorioso Lambari F.C. Os encanamentos padrão subúrbio de Bombaim são de tal monta que o único consolo é que nenhum Aedes aegypti vai abandonar seus dias de glória para se esconder naquelas curvas do vento. “Ói o cheiro de perfume”, brinca a dona de casa Marilene Floriano, autointitulada “parente do marechal”, expert em pular poças. São fichinha, diz ela, perto da pororoca que se forma na esquina das ruas Aretuza de Andrade com a Ismael de Almeida em horas de aguaceiro. Não queiram ver – é para os fortes.

Por falar em rua, no Lambari tem uma interrompida para o tráfego – a “General Luiz Carlos Pereira Tourinho”. De repente, vira um corredor sinistro, bloqueado por manilhas, uma espécie de portal do inferno construído com licitação. Nos lados, dezenas de placas informam que aqui e ali passa o duto da Petrobras. “A gente brinca que se acender um fósforo, a Lambari vai pelos ares”, avacalha o operário José Aparecido, morador. Essas “áreas bomba” são comuns em outros pontos da vila – nenhuma delas compensada por um jardim que seja. Não sobrou um dólar furado para investir em gentileza com quem vive de frente para o perigo.

De tudo, o que mais incomoda é o ônibus – ou a falta dele. Rolaram protestos. “Tive de apelar para velhinhos e deficientes. Convoquei-os. Quem sabe assim os políticos entendem o que é padecer sem transporte coletivo”, conta Anair. Ela é presidente da associação de moradores e se orgulha ter recebido para um café as primeiras damas Marry Ducci, Fernanda Richa e Márcia Fruet. Tititi dos bons.

Argumenta-se que a linha “Rio Bonito-CIC” não pode circular por toda a vila em função dos dutos. Vá lá que enrosca. A norma não vale para os caminhões de caliça. Com tanta rua alagada, é comum o passageiro ter de dar uma volta olímpica para alcançar o ponto. Chegando lá, o mato alto forma uma sucursal da Floresta Negra de Baden-Württemberg. Alguém alerta: “Vai sair cobra daí, minha gente” (risos). Mas creiam.

Coluna dedicada à ativista Luciana Cortez – a escrevinhadora de cartas do Rio Bonito. Antes mesmo do projeto do Ippuc vir a público, ela alertou a imprensa sobre o abandono da Vila Lambari.

  • Moradores no único ponto de ônibus da Vila Lambari (da esquerda para a direita): Ormando Oliveira dos Santos, José Aparecido, Marilene Floriano, Anair Gomes e a escrevinhadora do Rio Bonito, a ex-atleta Luciana Cortez.
  • O carpinteiro Ormando Oliveira dos Santos,62 anos, faz pose com carcaça de eletrônico despejado na beira das cavas: “Achei que viver aqui seria diferente”.
  • O auxiliar de serviços gerais José Aparecido atravessa a parte interrompida da Rua General Luiz Carlos Tourinho. “Briga por causa dos dutos é entre a prefeitura e a Petrobras. Não temos culpa.”
  • José Aparecido na rua interrompida: “Como vai ser num caso de emergência?”
  • A cadeirante Daniele Leal Stoch Schneider, 23 anos, ganhou uma cadeira motorizada, mas não tem como circular na paisagem lunar da Rua Oswaldo Faria Affonso da Costa, onde mora com a família.
  • Daniele e a poça de água. Família lamenta que as condições da Vila Lambari tenham tornado mais difícil a vida da cadeirante. Escola e fisioterapia fora dos planos.
  • Marilene Floriano na horta comunitária da Vila Lambari. Agricultores urbanos formam grupo de cinco idealistas. “Conhece o ingá?”, pergunta, sobre raridades do pomar.
  • Carlos Felipe Oliveira dos Santos, 14 anos, não mora na Vila Lambari, mas gosta de passar férias na casa dos parentes: lazer no campinho de pelada.
  • O cobrador de ônibus aposentado João Stresser do Nascimento, 45 anos, e as ruas que tem de enfrentar “atrás” do ônibus.
  • A líder comunitária Anair Gomes, 57 anos, numa das encruzilhadas da pequena Vila Lambari: “Três primeiras damas já tomaram café na minha casa.”
  • Vista da cava que deu nome à vila. Não existe o Rio Lambari, nem mais os lambaris, mas é como se existissem.
  • Placas informando os dutos enterrados podem ser vistos em todo o “Lambari”. Sem cuidados, essas áreas aumentam sensação de abandono.
  • Caminhões despejam caliça. Material aterra grande área alagadiça.
  • Aguaceiro na altura da Rua Angélica Tosin - da série “Águas da Vila Lambari”.
  • O barro é matéria-prima para as olarias da redondeza e tormenta na vida dos moradores, que o enfrentam todos os dias.
  • O material jogado para aterro traz também lixo, desorganização e riscos à saúde das 1,2 mil pessoas que vivem na Vila Lambari.
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