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Em Curitiba, o domingo é este biarticulado de janelas abertas, a cidade fluindo pelas canaletas. Nosso oceano é estreito, você sabe, e nossos destinos, tão poucos. O parque, o shopping, o jogo, o culto. Mas tudo bem. Cada viajante navega com sua tribo e em seu melhor uniforme, o coração no comando. Que nos leve a um descobrimento ou ao naufrágio, tanto faz; o que importa, nas travessias, é o mar de cada um. O meu anda calmo, não me queixo. Afinal, as tempestades têm ouvidos.

Hoje viajo sentado e em paz, nos fundos deste Santa Cândida-Capão Raso, e diante de mim há uma senhora. Ela não vai ao estádio, ao templo ou às compras. Vai ao baile, veterana das matinês. Há lugares de sobra no ônibus, mas ela não senta. O vestido de jérsei preto com paetês dourados mal lhe toca os joelhos e é justo demais, não pegaria bem, você compreende. Só não a tome por deselegante, faça o favor. Ela está linda, é a pessoa mais bonita entre nós. Tem as costas nuas e fortes, bronzeadas por um sol de milagre – em que céu o descobriu?

E é uma força limpa e funcional a desta senhora sem meias, os pés pintados da mesma cor de uva que as unhas postiças em suas mãos. Sim, há encanto nessas belas imposturas, e há verdade no ouro fajuto em seus dedos, e em seus brincos de sonho, dois lustres de cristal iluminando nosso domingo.

É a rainha do expresso, e os passageiros se dividem entre os que a admiram e os que a consideram uma piada perfumosa. Para mim, ela é uma graça superior. Sei que almoçou em casa, sozinha, os filhos crescidos espalhados por aí, namorando à luz confusa de nosso tempo. Produziu-se sem economia, apenas cuidando para não exagerar no brilho ao redor dos olhos, a purpurina insistindo em se acumular nos pés de galinha. Sei que enfrentou a vizinhança hostil, pegou um alimentador até o terminal mais próximo, e depois o expresso, levando consigo somente esta bolsinha de miçangas, o RG lá dentro, o estojo de maquiagem e um troco para o Cinzano, acompanhamento ideal para a música que lhe negam os dias úteis.

Perto da estação Silva Jardim, no entanto, começa a chover. Ainda não é um temporal, mas também não se trata de uma garoa qualquer, e as janelas são fechadas. A mulher sofre um abalo. Terá de andar duas quadras até a associação, e já vê devastadas as sandalinhas de salto, arruinado o penteado piramidal, perdido o fim de semana. Pior: ao primeiro trovão, todos no ônibus, cruéis, se viram para espiar sua agonia. Ela finge que não nos percebe, que suas sobrancelhas não despencaram, que sua boca não se curvou para baixo, uma ferradura de batom. Fria, desfila até a porta quatro. Vai desembarcar, girar a catraca e pronto, postar-se sob a pífia proteção acrílica do tubo, sabe-se lá quantas horas, a chuva está com uma cara péssima, paciência.

Só que, antes, um moço a intercepta. Oferece a ela um guarda-chuva automático, pode ficar com ele, a senhora vai precisar. Ela disfarça a emoção e recusa o presente, diz que não terá como retribuir a gentileza. Ele não desiste e ela desconfia, ele é bonito, quase um menino, e está bem vestido, calça ótimos sapatos, é educado, mas não, melhor não.

O ônibus para, as portas se abrem, ela agradece e salta. Ele a segue, impetuoso. Lá fora, o estranho abre o guarda-chuva enquanto o biarticulado se afasta, devagar. Podemos vê-lo dando o braço à senhora relutante, que enfim sorri e se deixa guiar. O casal desce os três degraus da plataforma ao meio-fio, seus corpos muito unidos, já molhados. A gente ri. A chuva engrossa. O vento decide ajudar e os leva embora, pelos ares, para longe de nós. Que pousem em segurança.

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