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A subida da Agostinho Leão já ia pela metade. Minha caçula dormia no carrinho. Minha filha mais velha se agarrava ao meu braço. Tudo parado, o mundo era uma fotografia. Duas quadras acima, porém, vinha descendo um homem que ventava. Na verdade, de longe, aquilo nem parecia um homem, mas uma ventania em forma de homem. A menina acordada até se escondeu atrás de mim, temendo decolar, buscando no pai um anteparo. Nervoso, me fiz de forte: calma, é só um homem ventando.

Era um sujeito de meia-idade, como eu. Só que, além de ventar, vinha sozinho: em vez de filhas, carregava trouxas, bolsas, sacolas. Aparentemente vazias. No início não entendi se ele vendia aqueles produtos, ou se eram apenas o símbolo de tudo o que não pudera acumular na vida, um fardo alegórico. Sacos vazios, cheios de vento, vocês sabem, às vezes pesam muito.

A distância, afinal, todo bufão é inofensivo, basta que não o ouçamos bufar

Por isso, talvez, o homem ventasse tanto, e tivesse aquela voz de trovão e granizo, apavorante, mas também sedutora. Ele parecia tomado por um desejo misto de justiça e vingança, um erro, e acusava todos ao seu redor de ladrões, assassinos e parasitas, jurando de morte os bandidos que ousassem lhe tomar as sacolas, ou mesmo invejá-las. Compreendi que eram o seu tesouro.

O povo fugia de seu caminho, driblava seu ódio, cruzava a rua sem medo de ofendê-lo. A distância, afinal, todo bufão é inofensivo, basta que não o ouçamos bufar. Só eu é que não pude fugir nem me fazer de surdo. Fiquei para trás, o carrinho rígido demais para a calçada irregular, impossível a guinada rápida. O jeito era seguir adiante, em linha reta, somente pondo meu corpo entre o do homem e o de minha filha mais velha, e cobrindo com um paninho o rosto do neném adormecido. Com sorte, torci, aquele homem irascível não nos notaria.

Errei. Mal nos viu, algo nas meninas ou em mim bateu as janelas dentro dele. Não digo que o tenhamos aquietado, acho até que foi o oposto disso, pois nos lançou uns olhares ursinos de perturbação. Mudo, mas não exatamente pacificado, veio para cima de nós, os braços caídos como as pás de um moinho fora de uso.

Não sei o que pretendia, e nem houve tempo para isso, pois o neném acordou chorando, e o choro confundiu o homem. Os quero-queros gritaram sobre o Couto Pereira, e os joões-de-barro responderam, e os bem-te-vis treplicaram, e o homem que ventava foi perdendo a força e a determinação, tornando-se tão suave e indistinto quanto a brisa que jamais balançará as araucárias.

Passávamos pela entrada de um estacionamento, e um automóvel embicou ali, agressivo. Impaciente, o motorista buzinou para nós, querendo que saíssemos logo da frente do portão. Ficou claro que ele também ventava, assim como o seu veículo, e aquilo contaminou o primeiro homem, voltou a agitar suas paixões, inflando o fole vazio de suas sacolas. Com a mão esquerda espalmada em direção ao para-brisas do carro, barrou o seu avanço, e com a direita nos apressou a passagem: por favor, podem passar.

Agradeci, deixei os homens lá, ventando um contra o outro, e fomos embora, minhas filhas e eu, ladeira acima, um pequeno redemoinho no meio da rua, mas ainda sob controle.

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