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Para minhas filhas, programa obrigatório, quando vamos ao Passeio Público, é visitar as Pitecusas. É como chamo as ilhotas onde moram os primatas do parque. Nossa favorita é a ilha dos macacos-aranha, animais por quem minha caçula desenvolveu uma fixação quase fanática. Pena o interesse não ser recíproco. A menina faz de tudo para ser notada. Grita, acena, dá bom-dia, é inútil. O bebê não comove os ilhéus, que o esnobam sem dó.

Às vezes, um ou outro macaco até nos dedica um olharzinho, da margem de lá do lago, mas logo se entedia. Prefere ajeitar o topete no espelho das águas. Pendurado pelo rabo, atraído pelos arrancos metálicos de um peixinho, fiscaliza a atividade dos biguás que pescam por ali. Uma esquadra de pétalas de jacarandá-mimoso veleja devagar, ao largo da ilha, e aquela navegação floral, sem rota nem heroísmo, lhe parece mais bela e portentosa que qualquer odisseia humana.

Minha caçula desenvolveu uma fixação quase fanática pelos macacos-aranha. Pena o interesse não ser recíproco

Só uma vez vi os macacos agindo de modo diverso. Culpa de um moço, pequeno e vigoroso, de traços femininos. Ele chegou calado, mas de forma tão impetuosa que seus movimentos equivaliam aos de uma revoada de guarás. Os animais reagiram prontamente àquela aparição, empertigando-se, como que alertados por um cheiro gostoso, um pressentimento qualquer de prazer.

De início, o moço nada disse. Limitou-se a catar do chão uns butiás que iam apodrecendo ao nosso redor, perfumadíssimos. Encheu os bolsos da calça, aprumou-se, encarou os macacos e aparentou farejar, naquele grupo, o amadurecimento de suas ansiedades mais secretas. Só então lançou a eles, por sobre as águas, um primeiro grito, alto e inesperado, que expulsou as carpas vermelhas da superfície do lago. Fez vibrar, em sua boca, uma sílaba qualquer, não lembro qual, só digo que era doce e não fazia sentido, ao menos em nossa língua.

Ao som daquela introdução, os macacos se amontoaram, uma dúzia deles, debaixo de uma arvorezinha de galhos curvos. Empurravam-se, excitados, a ponto de quase caírem no lago. Era como se esperassem por uma ordem, ou uma revelação. E decerto foi isso que o moço entregou a eles. Uma sequência intraduzível de estalos e palavras meio guturais, meio anasaladas, que ergueu, entre os bichos, uma onda de espanto e alegria.

Foi bonito. Havia dureza na voz do moço, muita poesia sem dúvida, mas também certa nota de comprometimento, de afeto. Difícil entender. Ele cantava lindamente, num idioma estrangeiro, de mágicas ressonâncias. Os macacos, do lado de lá, sem confusão nem agressividade, apenas se acotovelavam, entre o pasmo e a paixão, ouvindo aquele homem como se o compreendessem, ou buscassem compreender.

Mais tarde, depois de darmos a volta no parque, reencontramos o encantador de macacos, agora entre os de sua espécie. Sentados em roda, debaixo de um plátano, os moços passavam de mão em mão uma garrafa e um cigarro. A bebida animava o convescote, e todos ouviam, bêbados e atônitos, o que aquele homem tinha a cantar, enquanto repartia os butiás que sacava do bolso.

Ao fundo, nas Pitecusas, os macacos se mordiam de inveja e desejo, planejando o rapto de nossos fogos mais sutis, a liberdade, a música e a gramática.

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