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Na Praça Santos Dumont, ali estamos nós, o escritor Luiz Ruffato e eu, admirando o nariz quebrado do pai da aviação. Uma esfinge já enforcada, vazia de enigmas, não assusta ninguém, mas ainda será capaz de nos devorar cinco minutos de vida. É meio-dia em Curitiba, nosso corpo reage bem ao sol de julho e, diante daquele busto mutilado, mendicante de compreensão, aceitamos atrasar um pouco o nosso almoço. Sim, a miséria daquele buraco onde antes havia uma orgulhosa napa de argila nos fascina e distrai, conquista a esmola de nossa atenção. Dizem por aí que escritores são bons nisso de observar o mundo e mapear suas falhas, e que teriam olhos na nuca, antenas na alma e três corações de ouro no peito. Tolice: não vemos nada, só o invisível, no máximo algumas lacunas, e a dor que fingimos sentir é a nossa mesmo. Tanto que nem notamos o cara estrebuchando ao nosso lado. Um grupo de populares o socorre, e só o percebemos quando um deles nos aborda: "Vocês têm um celular?"

Ruffato não tem, odeia celulares, mas eu tenho um, apesar de odiá-lo também, e é com ele que chamo a ambulância. Explico à atendente o que me explicam: um jovem de 20 anos, aparentemente saudável, acaba de sofrer uma queda ao atravessar a Cruz Machado. Caiu para trás, cabeceou o asfalto. Desconfiam de epilepsia, a vítima jaz inconsciente, deitada de costas no banco de madeira para onde a arrastaram. Sua cabeça loura repousa sobre a mochila barata e sangra com modéstia, um pingo discreto, às vezes dois, a cada dez segundos. A atendente pede que eu me acalme, tudo ficará bem, uma ambulância logo estará a caminho, o homem é seu parente, amigo, conhecido? Não, respondo, é só um homem – cercado por outros homens.

Do interior de um carro branco importado, na Saldanha Marinho, uma mulher de meia-idade grita para nós, a uma distância de 20 ou 30 metros: "Ei, vocês, eu sou médica, ei, isso aí é convulsão, viu?"

Diagnóstico ao vento, missão cumprida, Hipócrates honrado em sua tumba no tempo, a doutora acelera e some à sombra da sinagoga Francisco Frischmann. O que fazer? Ruffato, prático cidadão de Cataguases, vota pela retirada. Concordo, e lembro a máxima de Otto Lara Resende: se os mineiros só são solidários no câncer, e o caso ali é de convulsão, chegara a hora de matarmos nosso bife à cavalo no restaurante da esquina. Se o doente morrer, não será por falta de enfermeiros comovidos. Que fique nos braços do povo.

Decidimos partir, mas uma reviravolta nos detém: da mochila do acidentado começa a escorrer um líquido transparente, em cascata. A população se assombra, cerca o infeliz, e um malandro menos tímido o alivia da mochila. Ela passa de mão em mão, de curioso em curioso, até que alguém encontra ali, entre roupas e cadernos, um litro trincado de cachaça. Revolta geral. Em triunfo, entornam a garrafa num canteiro de funcionárias, e de cada boca, antes piedosa, brota um insulto: abandonemos este bêbado, este vadio, este pilantra.

Sim, o abandonamos. No restaurante, Ruffato e eu sentamos a uma janela que nos permite vigiar o coitado. Nada da ambulância; o homem dorme sozinho por meia hora. Acorda e descobre a mochila murcha. Perdeu a pinga comprada no Mercadorama da Tiradentes, as apostilas do supletivo, a blusa tricotada pela avó. Acaricia o ferimento coagulado ao sol. De um passante de boa vontade, fila um cigarro e, tonto, vai fumá-lo diante do rosto deformado de Santos Dumont. Rindo, dá uma tragada, apalpa o próprio nariz, o orgulho preservado: sim, ele ainda está lá. É por ali que um homem faz a sua fumaça.

O colunista Luis Fernando Verissimo está de férias e volta a escrever neste espaço em novembro.

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