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Dia desses, na Osório, cruzei com um grupo de pessoas que olhava para cima, tentando divisar algo, ou alguém, na copa de uma tipuana muito alta. Fraco demais, mesmo atrasado para um compromisso, não resisti: a curiosidade é minha fome e, não duvido, será também minha morte. Previdente, foi para matá-la primeiro que me juntei àquele bando de sentinelas, vigiando o vento nas folhas.

Logo descobri o que procuravam. Era um papagaio. Não garanto porque não vi, mas me disseram que o bicho, sem cálculo e sem técnica, se lançou da sacada de um prédio sobre as árvores da praça. E ali, sem saber como voltar, esperava, da mesma humanidade que o tinha aprisionado, um projeto de salvação.

Sua dona, intuí, era a senhora aflita que coordenava as atividades de resgate. Sob as ordens dela, um rapaz de boa fé escalou o alambrado da quadra esportiva para depositar lá no alto, o mais perto possível do fugitivo, uma arapuca bem familiar: o velho poleirinho do papagaio. Foi o que me contaram. Torciam para que o animal, ainda inseguro quanto à mecânica dos voos, se atirasse do seu galho, de cabeça, buscando pousar sobre aquela pequena plataforma, símbolo maior de seus confortos perdidos.

Quanto tempo o papagaio aguentaria sem comer e beber? Quantos pavores suportaria até rever a manhã?

Percebi que sobreviria um longo impasse, o papagaio hesitando entre a independência e a vida, e decidi abandonar a cena. O povo, aos berros, já fazia coro à senhora fragilizada, chamando o papagaio pelo nome que ela escolhera para ele havia tantos anos, quando a relação entre os dois ainda era uma projeção de amoráveis esperanças. Só não me peçam para publicar aqui o nome do bicho; não o farei. Não pretendo transformar sua memória numa anedota convencional ou numa fábula educativa.

À noite, na cama, antes de dormir, dediquei meus últimos pensamentos aos infortúnios daquela ave, decerto ainda ilhada na tipuana. Lá fora, como diria Machado, fazia um frio de rachar passarinho. Quanto tempo o papagaio aguentaria sem comer e beber? Quantos pavores suportaria até rever a manhã? E quem na Osório manteria acesa, para ele, uma fogueira, uma vela, um fósforo que fosse, a fim de espantar as feras da sua imaginação, preservar-lhe a sanidade, as lembranças do lar abandonado?

Revisitei um texto de Paulo Mendes Campos sobre um mainá-indiano que amanheceu morto numa gaiola. Ao descobrir seu cadáver, a família que o criava resolveu tomar café antes de sepultá-lo, como se a morte de um mainá-indiano numa gaiola brasileira de classe média fosse a coisa mais natural do mundo. E foi assim que adormeci: aquecido sob o edredom, tentando considerar natural o sofrimento daquele papagaio na madrugada da Osório, um pássaro tropical colorido congelando numa praça de Curitiba.

Para encerrar esta crônica, gostaria de lhes dizer que o papagaio está vivo e em segurança. Mas não posso. No dia seguinte, quando passei pela praça, tudo parecia ter se resolvido. Só não me perguntem como: não vi nem me contaram. Não havia mais ninguém debaixo da tipuana. O poleiro, porém, continuava lá, vazio, sobre o alambrado.

Fiquem à vontade, portanto, para determinar o destino ficcional daquele papagaio. Pode ser que ele tenha virado um fantasma, eternamente fixo na Osório, ou voltado para onde o amavam, seu ninho entre os humanos, ele e suas asas podadas, sempre coladas ao corpo. Mas também pode ter despencado de seu posto, escravo de estimação exaurido, enfim livre de suas obrigações ornamentais.

Sim, quem sabe após tantas horas vividas no escuro e no frio, aquele papagaio não tenha se rendido à gravidade, à vertigem e à fúria para morrer de asas excepcionalmente abertas?

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