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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Mauricio tinha 15 anos quando morreu, durante as férias escolares. Nós, seus amigos, não pudemos vê-lo devido às circunstâncias da morte, em um acidente violento. Isso gerou em nós a sensação de que houve um desaparecimento, um sumiço. Nosso colega esvaneceu e, quando as aulas recomeçaram, não estava mais lá. Durante anos lembrei dele como de alguém que está em algum lugar que desconheço, e não de um falecido. Via seu melhor amigo, Mario, sozinho no colégio ou junto a outros garotos, e me parecia que ele estava sempre deslocado. Talvez fosse só a minha impressão porque meus olhos estavam acostumados a ver os dois juntos. Depois da realidade bruta, agora a morte se apresentava a nós, adolescentes, em sua face sútil: o vácuo deixado por quem se foi no mundo que nossos olhos veem, como um espaço vazio, e a dificuldade para aceitar que aquela pessoa não existe mais. Para os muito próximos, como era Mario em relação a Mauricio, ficou também a falta de jeito para tocar a vida, a vida que segue como se nada tivesse acontecido mesmo depois de um golpe violento.

Quase 20 anos depois, foi Denise, a colega de faculdade, que pouco eu via, mas muito estimava. Também morreu em um acidente e em um lugar distante. Dessa vez, nem sequer fui avisada. Um dia, liguei para o hotel em que ela trabalhava e a telefonista, sem cerimônia, me disse que ela tinha morrido. Caí no choro. Minutos mais tarde, outra pessoa da empresa ligou e conversou comigo. Denise também desapareceu do meu mundo material, como Mauricio, mas não da minha mente. Quantas vezes a vi caminhando pelas ruas de Curitiba em vislumbres que duraram segundos para em seguida me revelarem que se tratava de outra pessoa, que nem parecida com Denise era! Minha mente me enganou várias vezes, e sei que não sou a única a ter esses delírios visuais com os conhecidos que se foram.

Foi-se agora a Bela, em um domingo de eleições, após uma breve doença. Não somos mais tão jovens, nem ela nem eu. Mas ainda assim é uma perda que acontece antes da Grande Temporada de Perdas, vivida por todos que chegam à velhice. Antes da hora em que nossa cabeça acharia mais aceitável, suponho. Só suponho, porque não cheguei lá e duvido que o impacto dessas perdas diminua de fato.

Mais uma vez, não fui ao velório, porque Bela vivia em Porto Alegre. Por mais que tenha acompanhado sua doença, por mais que a tenha visitado um dia em que estava abalada por uma noite passada em branco, enfrentando dores excruciantes, ainda assim me resta aquela incompletude dos que têm de aceitar a morte mesmo quando ela chega como uma notícia, um recado no telefone.

Por horrível que seja a morte nas faces dos nossos amigos, a mensagem é tão concreta que para alguma coisa serve. Serve para nos confirmar a péssima notícia.

Mas Bela se foi – esse é o fato. E abre-se uma fenda no meu entorno. A vida, a realidade, a nossa humanidade – sei lá como nominar – está visível como nunca nesta fenda e, quando tiro os olhos dela e me volto para o dia a dia, sinto-me como uma traidora. Diante da perda de um amigo, ouvir as notícias sobre pesquisas eleitorais parece completamente fora de propósito. E comprar pão, e ler uma bobagem qualquer que alguém postou na internet, e ligar o computador... Tudo o que é comezinho está fora de proporção com o que a vida nos deu agora. O recolhimento, as cerimônias de despedida nos poupam por algumas horas ou por alguns dias de enfrentar esse paradoxo: uma pessoa que você ama desapareceu, mas tudo em volta continua o mesmo. Só você é que mudou, que está mais triste, mais pobre, mais só. Não há tempo nem espaço para se recompor, para fazer o luto da perda. É preciso ir votar, comprar pão, atender alguém que bate à porta, mesmo se sentindo um pouco traidor da memória de quem acabou de morrer.

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