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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

“Agora, sim! Vamos começar. Quando o relato terminar você saberá muito mais do que sabe agora.” Estas são as primeiras frases do conto A rainha da neve, de Hans Christian Andersen, um dos mais conhecidos do escritor dinamarquês. No Brasil, a versão da Disney (Frozen) é mais popular que o conto em si. Na história de Andersen há uma princesa que lê todos os jornais do mundo e depois esquece o que leu. Ela é descrita pelo narrador (um corvo) como sendo “extraordinariamente esperta”.

A frase sobre o hábito de leitura da princesa soa irônica e tendemos a crer que a esperteza consistia em esquecer o que lia nos jornais. O que faz algum sentido, já que o excesso de informação nos torna ansiosos, nos confunde. Além disso, toda reportagem é sempre uma versão dos fatos. Pode ser uma versão muito honesta, mas ainda assim é uma versão. Por isso tudo imagino a princesa-leitora como alguém que, depois de chegar às próprias conclusões sobre os fatos do mundo, esquecia o que estava nos jornais. Ela digeria o noticiário.

O excesso de informação nos torna ansiosos, nos confunde

Andersen parece debochar dos que leem, mas ao mesmo tempo valoriza o esforço ao dizer que “quando o relato terminar você saberá muito mais do que sabe agora”. Ao terminar a leitura de todos os jornais do mundo, a princesa estava sabendo mais do que sabia antes. Como era esperta, tratava então de esquecer o que merecia ser esquecido.

Em uma das ilustrações mais conhecidas do conto de Andersen, a princesa aparece sentada na sala do trono, poderosa e meditativa, com as páginas dos jornais jogadas pelo chão. Isso foi pouco antes de ela decidir se casar e definir o critério para a escolha do marido: teria de ser um homem inteligente e não apenas de boa aparência. Um critério coerente para uma mulher que era tida como muito esperta.

A ilustração feita pelo francês Edmund Dulac me chamou a atenção por colocar uma mulher em trajes barrocos cercada por páginas de jornais – páginas que nos nossos dias vão desaparecendo, dando lugar às edições digitais. O conto de Andersen nos lembra há quanto tempo os jornais nos acompanham, de quantos contextos, períodos históricos e regiões do mundo já fizeram parte. A princesa de Andersen vivia na Dinamarca na primeira metade do século 19 e lia jornais. Quando decidiu escolher um marido, fez a convocação para os pretendentes usando uma edição especial enfeitada por “uma moldura de corações”. Ela é uma figura feminina rara nos contos de fada: é descrita como inteligente e não como bonita; escolhe o próprio marido; não se guia pela aparência do príncipe, que não deve ser “encantado”, mas sim ser capaz de responder perguntas. E, para completar, a princesa lê todos os jornais do mundo.

Escrevo hoje sobre a princesa para me despedir do papel-jornal, onde meus textos apareceram nos últimos dez anos. Agora migrarão para a edição semanal da Gazeta do Povo que circulará nos fins de semana. Desta década, guardarei uma grande preciosidade: as mensagens dos leitores. Leitores que eu descreveria como Andersen descreveu a princesa: eles gostam de ler jornal e são extraordinariamente espertos.

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Tempos atrás, um leitor de Londrina me enviou uma carta pelo correio. A carta chegou a mim sem o envelope e não consegui decifrar a assinatura. Caso o leitor esteja me lendo hoje, aproveito para mandar um abraço e agradecer a mensagem.

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