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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Morador de cidade grande, de bairro central, ele se julgava livre dos transtornos causados pelo mau tempo. Alagamentos, granizo, quedas de árvores afligem a periferia, não um morador de bairro nobre. Era nisso que ele acreditava até esta semana, quando foi para casa à tardinha e, ao chegar à sua rua, encontrou-a no escuro. Nenhuma lâmpada acesa, nem nos postes nem nos prédios. No seu endereço, o porteiro esperava no portão aberto. Garagem no escuro, difícil de manobrar. Um vizinho nervoso soltava palavrões lá na vaga do fundo. Achou melhor não perguntar nada e sair de mansinho. Subiu o lance de escadas e encontrou a zeladora lhe estendendo um toco de vela acesa para iluminar a subida até o apartamento. Que eficiência! Arrastou-se escada acima, sendo ultrapassado aqui e ali por uma mocinha ligeira e por crianças com pose de maratonista. Bando de exibidos. Vão cair e quebrar os dentes. Seu ritmo arrastado era mais seguro, consolou-se. Além do que, era o único ritmo possível para um homem sedentário da idade dele. Sempre a preguiça de se meter em uma academia. Sempre a falta de tempo.

Dentro do apartamento, o breu. Lembrou-se da sacola com velas e caixas de fósforo que a ex-mulher mantinha na área de serviço e que ele nunca entendeu para que servia. Até desdenhava do excesso de zelo. Na sua lista de compras nunca anotou "velas".

No banheiro havia velas. A arquiteta que fez a reforma o convenceu a comprá-las. "Criam um clima relaxante e sexy", explicou ela com um arzinho malicioso. Sim, claro, ele precisava criar um ambiente sexy em casa, afinal era um homem livre. É verdade, as velas nunca foram acesas e naquele momento, tateando as portas e paredes, ele até ficou mais conformado por não ter tido o momento "sexy" com as velas grandes e perfumadas.

Grandes, perfumadas e inúteis. Concluiu após acender os pavios minúsculos. Até o toco que a zeladora ofereceu iluminava mais.

O que fazer quando estamos às escuras? Não queria perder tempo, ia fazer algo útil. Telefonar para a mãe para saber da saúde dela? O telefone não funciona. E o celular? Sem bateria e não dava para recarregar.

Abriu a geladeira esperando aquela luz azulada característica. Esqueceu que estava sem eletricidade. A situação começava a irritá-lo. Supunha que a energia ia voltar logo, mas o tempo estava passando e nada. Isso é um blecaute? Lembrou que no Brasil já houve blecautes. Aquele enorme foi em 1999. Até em Nova York teve blecaute. Quando mesmo? Hora de pesquisar na internet. Não tem internet. Nosso mundo sem energia elétrica não existe. Até a memória (leia-se o Google) não funciona.

Foi deitar no escuro mesmo. O filho adolescente chega e entra gritando para não assustar. Bom menino. "Você está aí, pai?" O tênis voa para um lado, a jaqueta ensopada cai no chão. Ele se segura para não dar bronca. Afinal, o rapaz se joga na cama com ele e pergunta se pode ficar. O filho quer ficar contigo, como reclamar? Ficam os dois no escuro, falando da vida. Riem. Ele sente sono, mas se controla para prolongar as brincadeiras e o papo. Papo sobre o quê? Nem lembra, mas foi gostoso. A luz das velas "sexy" cada vez mais fraca e ele ali, cercado de aparelhos eletrônicos que, desligados, não roubam a atenção nem dele nem do filho nerd.

Dormiu se sentindo um abençoado.

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