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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Ao contrário da maioria, esta senhora nunca reclamou de ter de presentear amigos e parentes, vizinhos e colegas de trabalho. Não dizia que o shopping estava lotado e que mal podia andar na rua. Nem que havia gasto o 13.º em lembrancinhas natalinas. Porque nunca comprou presentes para ninguém. Quando entrava dezembro, às vezes antes, ela ficava mais atenta. Passava os olhos miúdos em volta e eram olhos de Papai Noel. Buscava objetos de sua casa que serviriam de presente para alguém da sua lista. Sim, lista ela fazia. O que não fazia eram compras.

A camisa de seda que ganhou e nunca usou foi presenteada para a cunhada. Por isso não tirava as etiquetas das roupas até o momento de vestir. Nunca se sabe... Aquele livro já lido, mas impecável, ia para o amigo secreto. A colher de pau tão linda que só usou uma vez é lavada, colocada ao sol para secar e, bem embrulhada no papel de seda azul e fita de cetim, vira regalo para o cunhado metido a chef. Porque papel e fitas, esses ela comprava. Os papéis estão organizados em um daqueles antigos porta-rolos que os armazéns colocavam sobre o balcão: encaixes para papéis de três larguras diferentes. Fitas pendem de um suporte improvisado na “biblioteca”, que vem a ser uma estante com uns 100 livros, já que ela não acumula nada.

Nem pão-durismo nem preguiça. Era um ato de revolta, discreto como sempre são os atos de revolta das pessoas elegantes

Se nessa época alguém sabia o que ela andava fazendo, não posso informar. Não sou da família e esse tipo de coisa é comentado na surdina, na hora da sobremesa ou de lavar a louça. Eu não estava lá para ouvir.

Com o passar do tempo, radicalizou. Colocado na garrafinha de suco de uva enfeitada com tules e fitas, o cacho de hortênsia colhido na casa da amiga de Campo Largo foi entregue para a afilhada. O livro indisfarçavelmente velho (páginas amarelas, edição esgotada), mas delicioso (Helena Morley, conhece?), será lido pelo irmão. O guia Michelin da Iugoslávia gerou um momento único: foi dado ao neto, mas os sobrinhos passaram a noite de Natal inventando desculpas para se apoderarem da peça histórica. Provavelmente de olho nos dólares que aquilo renderia em um leilão do eBay.

Do radical, ela foi para o minimalista. Conchinhas que recolheu em uma prainha de Búzios. Uma enorme folha de costela-de-adão. Um filhote de gato. Uma muda de sete-léguas (e um bilhete escrito à mão com instruções sobre o plantio). Um velho tijolo intacto que um dia fez parte de uma casa de italianos de Santa Felicidade. Nem todo mundo entendia, é claro. Mas ela sabia o que fazia. Notou que os mais jovens eram mais abertos a inovações. Ultimamente as meninas disputavam suas velhas boinas e o menino que ganhou o tijolo até postou uma selfie no Instagram em que ele sorri ao lado do objeto histórico. O mais velho da família não “curtia” essa originalidade toda. Por isso não ganhava presente. Ponto final.

Nem pão-durismo nem preguiça. Era um ato de revolta, discreto como sempre são os atos de revolta das pessoas elegantes. Ela achava patético e vulgar comprar como um nouveau riche. Ao mesmo tempo, via beleza em tudo. As fitas de cetim! Como não apreciar a delicadeza daqueles tecidos levemente brilhantes e que não servem para nada a não ser para compartilhar com outros objetos um pouco de sua elegância? Quando comunicou à cunhada que deixaria para ela, como herança, as fitas penduradas na biblioteca, recebeu como resposta uma lágrima furtiva.

Morrer perto do Natal é cruel. Mas morrer é cruel em qualquer época. Na hora da ceia, acabamos sempre lembrando dos mortos. Então ela se foi dia desses e, no velório, lamentou-se sua ausência neste e nos próximos dezembros. Sem seus presentes, aquelas noites não serão mais as mesmas.

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