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Nunca convivi com uma pessoa sem que tivesse aprendido algo com ela. Nem que fosse uma coisa irrelevante, um jeito de apontar o lápis, a forma de pronunciar uma palavra, a receita de uma sopa, uma maneira de olhar a chuva; e o que pertencia a essas pessoas, talvez seu bem mais caro, passou também a me pertencer. Eu me fiz herdeiro sem privá-las daquilo que tão custosamente acumularam.

Para saber fazer uma sopa de maneira totalmente inédita, a pessoa leva a vida inteira em testes, em mínimas inovações a cada trabalhosa reedição. Mas, em poucas horas, podemos tomar posse dos segredos de um maravilhoso creme de cebola, em que as cebolas, aos serem mordidas, por dentes cheios de reverência, revelam uma rijeza crocante. E então comungamos com a língua levemente entorpecida.

Não existe ninguém, nem mesmo este velho professor, que não tenha algo valioso a ensinar. Quando convivemos com os pretensos gênios, aqueles que aparecem em programas de entrevista dando opinião sobre tudo, sobre o tornado que devastou a cidade onde ele jamais esteve, o desempenho do jogador de um time argentino, a nova moda dos livros eletrônicos, bem, quando convivemos com essas vaidosas centrais elétricas, não encontramos muito mais coisas herdáveis do que do mais obtuso colega de trabalho.

Cada ser humano traz umas poucas coisas para nos ensinar ainda quando ele detém muitas informações, pois a maioria delas simplesmente não nos serve.

Terá uma boa formação aquele que conviver com uma variedade de classes, com as pessoas mais diferentes, donas de experiências particulares. Aprende mais quem sabe se mover socialmente, conseguindo sustentar uma conversa fora de seu meio. Se você não suporta ouvir uma pessoa na fila do banco, se não se interessa pelas mentiras daquele pobre diabo ou se simplesmente ignora o poderoso empresário porque acha que ele é corrupto, bem, você está limitando suas possibilidades de ser.

Só se aprende no deslocamento. Ficar restrito a um grupo, a uma categoria profissional, a um nível social ou às próprias idéias e vivências é cultivar o fanatismo. Fanáticos não apreciam novos pratos, preferem repetir a comida de sempre, nesta monotonia de ser invariavelmente idêntico. Fanáticos não viajam inclusive quando viajam; estão sempre em casa, encalacrados em si mesmo, com seus pijamas próprios para o medo, e para dormir mais cedo.

O aprendiz em potencial se faz um ímã. Mal conhece uma pessoa e já atrai gulosamente para si o que havia nela de transferível.

Muitas vezes é uma mania boba, como comer uma fruta antes do almoço, acrescentar pimenta de aroeira ao risoto, começar a leitura do jornal pelas cartas dos leitores. Tudo para o homem-ímã são acréscimos que nos dispersam de quem somos.

Nietzche: o ser humano é soma. Vamos acumulando experiências das pessoas com que nos relacionamos.

Superfície com alta aderência, fixamos o diferente. Somos tanto mais humanos quanto mais nos movemos entre pessoas, quanto mais deixamos o eu para ser o nós, o eles. Assim, não existe o indivíduo, todos somos o coletivo. Coletivo restrito ou amplo, dependendo se fanáticos ou não.

Maior portanto do que o pensamento é a ficção, esse espaço infinito das aprendizagens.

Entender como ficção tudo que coloca seres humanos em situações relacionais. A poesia que revele pessoas e suas dores é ficção. O livro de história, mesmo do autor mais sisudo, ainda é ficção.

O mundo real teatralizado, elevando-se a uma potência formadora. Entramos na ficção para aprender com pessoas, não para subscrever sistemas. Nada está ali processado, tudo pulsa, e este pulsar nos move, nos retira de quem somos, dando-nos outra substância.

Aprendemos com os personagens ou com autores que são antes de mais nada criações ficcionais. E assim potencializamos a experiência de mundo. A ficção como continuidade das relações humanas. Um mundo morto que ainda está em pleno funcionamento.

A biblioteca como uma história viva. Nela, aprendemos com os personagens mais humildes, referendando pontos de vista. Quem nunca foi um mendigo depois de ter acompanhando a trajetória de Quincas Borba, e de ter com ele enlouquecido, passando de mendigo a capitalista? Mesmo que Machado de Assis o achasse risível, dele nos fizemos amigo, e compartilhamos seu apego a um guapeca.

A voz do autor em um livro nem sempre é a mais humana. Ele pode defender preconceitos e colocar na boca do personagem desprezível verdades que nos chegam sob medida. Mesmo um crápula pode nos comunicar seu entusiasmo, por exemplo, por obras de arte.

Suspeite, portanto, de quem não lê ficção, de quem não gosta de cinema, mesmo que seja de filmes idiotas. Talvez seja um fanático, defendendo um mundo de purezas, filtrando verdades, essas não são adequadas para nossa seita, ideologia ou estética.

Só aprende quem aceita mudar as receitas e, nos restaurantes, arrisca o prato à moda da casa.

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