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Num evento, me chamou a atenção uma jovem bem vestida, que tinha uma frase tatuada no braço desnudo. Aproximei-me e li: viva la revolución! Era no mínimo uma cena insólita. O corpo estonteante daquela moça transformado em mural. Bem vestida, bem nutrida, usando roupas da moda, a jovem fazia propaganda revolucionária, mais como um detalhe de grife do que como ideologia.

Venho de uma viagem a Cuba, sobre a qual falei pouco porque ainda não consegui processar todas as experiências vividas lá. Estava decidido a não escrever sobre o que não consigo avaliar direito. Mas esta cena inesperada me devolveu àqueles dias.

Como souvenir, trouxe algumas coisas que julguei (ai de mim!) autênticas. A mais simbólica delas talvez seja uma nota de três pesos nacionais, com a imagem de Ernesto Guevara. É uma cédula nova, com impressão em vermelho. De um lado, a imagem universalmente conhecida del Che, feita por Alberto Díaz, vulgo Korda, um signo que completou este mês 50 anos. No verso, também impresso em tinta rubra, a imagem de Che cortando cana, com a legenda: "precursor do trabalho voluntário". Recebendo salários muito baixos – menos de 40 dólares por mês, quase todo trabalho hoje em Cuba poderia ser considerado voluntário.

Os pesos nacionais não são para estrangeiros. Estes usam C.U.C., os famosos pesos convertíveis, ou fulas, na gíria. Na casa de câmbio, pedi alguns pesos nacionais, que só valem no comércio para cubanos. São necessários 24 pesos nacionais para comprar um C.U.C. Um refrigerante, uma Tukola, versão antiimperialista da Coca-cola, custa 36 pesos – ou seja, 12 notas del Che.

Fiz a conversão do dinheiro nacional para fins de memória. Não o usei para comprar nada. Também recebi umas moedas de três pesos, com a efígie deste herói cuja presença é tão querida no mundo todo, principalmente no discurso da revolução.

A primeira coisa que mexe com a gente em Cuba é a ausência da propaganda de produtos. Estamos tão acostumados a placas, outdoors, prédios inteiros estampando o reclame das marcas mais populares, de sabonetes a carros, que sentimos um grande vazio visual ao percorrer Havana, com prédios deslumbrantes, muitos totalmente corroídos. As únicas placas que existem lá são as que exaltam a revolução.

A ideologia é o grande produto do país. Não deixei de ler uma única mensagem, das muitas que me garantiam que, sim, "venceremos!". Tudo isso se condensa numa imagem que traduz essa maquinaria ideológica. Mártir, ele se transformou na versão pagã de Cristo, figurando como centro de uma crença. De todos os lugares, Che nos fita com seus olhos líricos.

Nas poucas livrarias, em meio a livros de Fidel Castro e Hugo Chaves, há dezenas de títulos de e sobre o herói. Também descobri um calendário com fotos dele. Os vendedores de artesanato oferecem aos turistas com fumaças revolucionárias as réplicas de sua boina, camisetas, bonecos, CDs com as músicas feitas em sua homenagem – nenhuma tão bonita quanto "Hasta siempre, comandante" (1965), de Carlos Puebla, recentemente customizada por Nathalie Cardone, representando uma jovem mãe revolucionária.

Mesmo os mercadores clandestinos de charutos se valem da força deste ícone para convencer os compradores, lembrando que eram da marca Montecristo os charutos que Che fumava.

Nos monumentos, ele reina absoluto, como na Plaza de la Revolución, onde o seu rosto está estampado num prédio.

Esta presença atinge todos os níveis publicitários.

Há muitas escolas primárias na cidade, funcionando em locais que mais lembram casas ou pequenos comércios. Entrei em uma delas, no centro velho de Havana, para ler um cartaz muito rústico, com fotos de Che coladas numa cartolina, e uma frase que revela o seu poder: "Queremos ser como Che". Ele é o cidadão ideal do comunismo, alguém que deu a vida pela causa.

Poderíamos dizer que há um primarismo nesta exaltação do herói, e que isso só se manifesta no discurso oficial e na linguagem artesanal voltada para nós, turistas, sempre suscetíveis às representações mais estereotipadas.

Mas mesmo a arte cubana faz reverência ao ícone. Numa tarde intensa que passei no Museu Nacional de Belas Artes, pude ver retratos de Ernesto feitos por Alberto Jorge Carol, Félix Beltrán e Raúl Martínez. Claro que eles pertencem à arte engajada de um país onde o engajamento é parte do sistema, mas estão longe do artesanato destinado ao turista.

A revolução gira em torno de Che, representação de uma juventude rebelde, exibindo cabelos compridos e alvoroçados, presos pela boina, e a barba ainda jovem e também revolta. Poderíamos até imaginar como teria sido o destino de Cuba pós-revolução se não contasse com o magnetismo deste homem bem-afeiçoado, corajoso, despreocupado consigo próprio, que leva o seu projeto até a morte prematura. Talvez a revolução não tivesse se mantido tão coesa se não houvesse este poder sedutor de Che.

Há muito sofrimento e muita insatisfação em Cuba, pude perceber isso no olhar das pessoas, mas imensa é a força de um povo que jamais se curva, nem diante da falta dos gêneros de primeira necessidade. Mesmo neste estado de restrição (de produtos e de liberdade), há alegria e entusiasmo autênticos, e me senti acolhido pelo país.

Recusando usar adereços da revolução – embora tenha comprado as famosas camisas caribenhas (as guayaberas) –, guardo com carinho minha nota de três pesos, tão desvalorizada, mais suficiente para me levar aos meus sonhos juvenis.

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