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Quando, ainda jovem e cheio de ilusões, eu freqüentava um curso de pós-graduação em literatura, sofri uma violenta crise depressiva. Cansado das aulas em que se discutia tudo menos literatura, e querendo acreditar no poder do texto literário, eu me exilava na biblioteca da universidade e lia aleatoriamente os poetas do mundo todo. Um amigo que estudava comigo, me viu lendo esses autores não-recomendados pelos professores e estranhou minha dedicação a eles. Como eu não fiz questão de explicar aquela extravagância, e diante de meu silêncio, ele confessou.

– A coisa de que menos gosto é de literatura – e saiu com o livro que iria tomar emprestado, provavelmente um ensaio teórico.

Isso me deixou destruído. O que eu estava fazendo num lugar em que as pessoas que estudam literatura detestam literatura? Como uma revolta íntima, escrevia os poemas de meu primeiro livro. Morando num minúsculo sobrado litorâneo, eu datilografava os poemas em minha já naquela época velha Lettera 35, que vinha da época de ginásio. Lá fora, na noite imensa, eu ouvia o mar e seus milênios de luta incessante contra o continente. Dentro do sobrado com poucos móveis, sentado na escada que levava ao quarto, máquina no colo, ia passando a limpo meus poeminhas recentes.

Esse ódio universitário à literatura era, para mim, um ódio ao escritor que eu sonhava ser.

Tomando isso como uma ofensa pessoal, fui me ligando mais aos escritores, afastando-me daquele modelo intelectual um tanto kafkiano, que negava o que devia promover, como é comum acontecer em qualquer processo de institucionalização da arte. Nas conversas que tive, pouco tempo depois, com o poeta José Paulo Paes, aprendi a rir dessas pretensões teóricas. Zé Paulo definia as dissertações e teses de doutorado no Brasil como uma "viagem entre aspas". Durante a leitura delas, vamos pulando de citação em citação. Da minha parte, com esta minha notória mente suja, passei a ver este tipo de ensaísmo como lengalengagem, onde se fala sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo.

E me exilei nos escritores. Foi em Mario Quintana, lido desde a adolescência, que encontrei conforto para meus tormentos. Em Caderno H (a primeira edição é de 1973, auge da ditadura militar e do estruturalismo), o poeta gaúcho se revoltava contra a voga da teorização extrema em torno da literatura. Em "O poeta e os exegetas", ele desabafa: "Há anos venho procurando esta raridade bibliográfica: uma edição da Divina Comédia sem comentários. Ra­­ridade? Creio que nem existe uma maravilha assim...". O contato com os grandes livros está tão mediado pela crítica que é quase impossível chegar a eles diretamente, sem pagar o pedágio às leituras pré-fabricadas. Ler literatura acabou se tornando ler sobre literatura, numa mudança perigosa de objetos e de objetivos. O que forma o leitor é o contato com o texto literário e não com as doutas análises dos mesmos. Quin­tana ironizou este equívoco em outra nanocrônica ("Leitura"):

"Essa mania de ler sobre autores fez com que, no último centenário de Shakespeare, se travasse entre uma professorinha do interior e este escriba o seguinte diálogo:

– O que devo ler para conhecer Shakespeare?

– Shakespeare".

A obviedade da resposta é algo que espanta. Mas continua sendo necessário reafirmar isso. Nada substitui a obra criativa, porque nela os sentidos não estão sedimentados, há uma efervescência de sentimentos e de idéias que não se acomodaram ainda, que continuam e continuarão em permanente turbilhão, permitindo que o leitor, por menos preparado intelectualmente que seja, chegue a conclusões pessoais, reconheça continuidades e descontinuidades com as suas experiências, faça novas descobertas.

Enquanto a leitura dos críticos é uma tentativa de estabilizar conceitos sobre a obra, num processo de planificação enciclopédica, o conteúdo selvagem dos livros, sempre em atrito com o senso comum, continua propondo novas imagens. Mário Quintana vê nisso o grande poder da poesia, o de permitir visões inéditas das coisas. É isso que fica dito em "Do conhecimento": "Tudo já está nas enciclopédias [hoje diríamos na internet] e todas dizem as mesmas coisas. Nenhuma delas nos pode dar uma visão inédita do mundo. Por isso é que leio os poetas. Só com os poetas se pode a­­­prender algo novo".

Esta aprendizagem faz do leitor alguém livre de todas as viseiras ideológicas. Num livro de literatura há sempre a possibilidade de se surpreender, participando do território movediço das contradições, das tensões não-resolvidas.

Em oposição a este mar tumultuoso, há o sistema acadêmico de leitura, onde se consagrou o poder da reprise, uma vez que prevalece o princípio da citação. Observando o comportamento dessa espécie de intelectual que repisa sempre os referenciais teóricos reverenciados pelo grupo, percebi que todos começam a leitura de uma tese pelo fim. É pela bibliografia que se lê, pois se bus­ca avaliar ali o po­­der de multiplicar conceitos so­­bre a produção literária, cuidando sempre da pureza dos autores convocados para falar em nome de quem assina o ensaio. Toda produção estritamente acadêmica funciona como um pequeno congresso de vozes consagradas, que falam sempre o mesmo, o édito.

E aqui concluo esta pequena viagem entre aspas. Aspas poéticas, menos opressoras porque abertas.

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