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O Professor chega sem dar atenção aos poucos freqüentadores do bar. A calça bem passada, com um friso impecável, gosta de dizer que é ele mesmo quem cuida da roupa, a camisa de manga comprida, nunca mostra os braços por pudicícia, e os sapatos lustrosos de quem comanda algo. E, para completar a distinção, ele tira do bolso uma moeda de 50 centavos e a aperta, com delicadeza, sobre a fórmica do balcão.

Não precisa dizer nada, sua dose de pinga é servida, e já lhe trazem o jornal – apenas o primeiro caderno, o Professor não é muito sensível a outros setores de nossas folhas de imprensa. Mas maior dedicação às matérias locais do que a dele não há.

Lê primeiro a Coluna do Leitor, depois começa pela página 2. Metódico e ausente, o Professor se entrega aos textos, surdo à bagunça do bar, onde os bêbados matinais, aqueles que começam antes das 10, já estão um pouco molhados, esperando a tarde toldada de cansaços.

Aproximo-me.

– Como tem passado?

Ele me olha impassível, voltando ao jornal. Não quer intrusos, mas noto que lê o caderno de assuntos internacionais. Algo de errado está acontecendo, nunca vi o Professor se interessar por tais temas, embora fale sempre de uma viagem a Nova Orleans com certa senhora, e oculta o nome da senhora.

– O Professor agora está ampliando os horizontes? – digo enquanto ele levanta o dedal de pinga ainda cheio. Bebe como um passarinho.

Fazia semanas que não encontrávamos mais o Professor pelos bares e cafés, pensamos que tivesse morrido, mas logo descartamos esta hipótese. Um homem do gabarito dele não morre sem arruído. A cidade inteira saberia. Senhoras comentariam o passamento do professor que formou gerações.

E agora ele está aqui, no mesmo lugar de sempre, em pé no balcão, retomando o hábito de ler jornal e beber pinga. Descubro-o um pouco pálido.

– Esteve doente, Professor?

Ele me olha como se eu falasse uma língua estrangeira, ignorando-me. E vira a página do jornal.

– Por onde o senhor tem andado?

– Estava em Brasília – diz, sem me olhar.

– Algum parente ou começou a operar com o governo federal?

– Nem uma coisa nem outra, meu hipócrita amigo.

Enfim está de volta o bom e velho Professor.

– Imagino que tenha ido conhecer a arquitetura moderna.

– Sou da arquitetura eterna. Modernidade é uma mania de vocês.

– Por que então Brasília?

– Para desmascarar os ministros. Você viu as casas que eles têm lá no Lago Sul?

– Não tive ainda a honra de ser convidado.

– E quem diz que precisa de convite. Decidi ir e fui. Ver o desavergonhamento dessa gentalha. Piscinas imensas. Jardins que são verdadeiros latifúndios. Um congestionamento de carros nos pátios.

– Os homens ganham pouco, apenas 10% dos diretores de multinacionais. Deve haver alguma compensação.

– Dane-se tudo – e ele desiste do jornal.

– Fazer uma viagem apenas para constatar as mordomias dos ministros. O Professor está podendo, hein?

– Mas fui também a Macchu Picchu. Como são lindas as ruínas de uma cidade. Macchu Picchu é uma Brasília em final de semana. Gostei mais, logicamente, do que sobrou da cidade inca.

– É isso, Professor. Brasília como as ruínas de um tempo perdido. Então tem viajado muito? – está aí a explicação de seu sumiço.

– Muito, Menino. O que mais resta a um velho?

– O senhor não é tão vivido assim. Aposto que ainda não fez 60.

Ele fica todo pimpão. Peço um chope e agora já somos velhos conhecidos de novo.

– Me conte dessas viagens.

– Nunca antes pude viajar, agora tiro o atraso.

Deve estar fazendo financiamento nessas casas de crédito especializadas em explorar aposentados. Não falarei sobre isso.

– E foi aonde mais?

– Para as Malvinas. Está no mesmo lugar.

– E é fácil ir para as Malvinas?

Ele ri.

– Muito fácil.

– Qual país o senhor prefere?

– Gosto muito da Grécia.

– Não me diga que foi para lá também?

– Não só para lá.

O Professor ficou mesmo louco. Não pode ter estado em tantos lugares assim. Está mentindo. Mas não tenho coragem de desmascará-lo.

– Sentimos sua falta. Mas, me diga, não sofreu muito com os aviões. Os aeroportos estão um pandemônio.

– E quem precisa de avião? Você é mesmo um imbecil.

– Não vai me dizer que o senhor é desses que usam ônibus e navio apenas para evitar as confusões de aeroporto?

– Essas formas de viagem acabaram. Ninguém mais quer isso.

Estou novamente vencido. Tenho que me entregar ao mistério do Professor.

– Como então o senhor viaja? Em lombo de burro?

– Pelo Google Earth. Comprei um computador, e uma moçoila está me ensinando tudo. Passo o dia indo de uma cidade a outra.

– Concordo com a parte da moçoila, mas o que o senhor faz não é viajar. Apenas vê o planeta na tela. Um viajante que não se move.

– E é muito diferente de quem viaja de avião? Em segundos vou e volto aos lugares mais improváveis. Sem incomodações, gastos, perda de tempo. Agora mesmo, estou vindo da Itália.

– De que cidade?

– Estive em Lampedusa.

E bebe o resto de pinga, tomando o rumo da porta.

– Coitados de vocês que nunca saem da cidade.

– Coitados dos que saem da cidade nos feriadões – retruco.

Mas o Professor já iniciou sua mais perigosa viagem. Chegar em casa.

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