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Final de noite, estava pensativo diante de uma garrafa de vinho português que se acabava. Minha mulher perguntou se tinha acontecido algo. Sempre está acontecendo algo, eu poderia ter dito. Mas preferi o silêncio.

– Não, nada.

Ela puxou uma cadeira – eu bebia sozinho na mesa da cozinha – e tomou um gole da taça já manchada da gordura de meus lábios.

– Vamos, me conte.

Eu tenho crises depressivas com uma frequência própria de rinite. E aqui em casa todos sabem que, quando não falo, algo em mim está errado. O meu silêncio é sinal de tempestades interiores. Não apenas me calo como minha voz – no geral tão estridente – quase desaparece.

– Você se lembra de quando éramos crianças e íamos à mercearia para nossos pais?

– Silêncio no estúdio! Gravando mais uma cena do filme No-País-da-Infância.

Fingi não entender a brincadeira dela. E comecei a lembrar. A primeira diferença: como tudo era perto, comprávamos as coisas apenas para a próxima refeição. Estávamos sempre indo à mercearia. A mãe faria um bolo, então precisava disso e daquilo. Alguém corria até o comércio.

– E voltávamos com um pacote de papel.

– Agora os pacotes de papel vão ser obrigatórios nos mercados – minha mulher tentou me consolar.

– Não vai resolver muita coisa.

– Lá vem o Senhor Pessimismo.

Voltei correndo ao passado. Assim que tirávamos as compras, a mãe dobrava o pacote e o guardava em uma prateleira. Ela não usaria aquilo para nada, mas quando juntava uma quantidade grande, levava para a nossa cerealista, para que fossem reutilizados para vender arroz, feijão e outros mantimentos.

– Você pode pensar: isso era normal numa família como a minha. Mas o bonito desta história é que os vizinhos todos faziam a mesma coisa. E os clientes também traziam os pacotes usados. Então, havia um sentimento de economia unindo as pessoas.

– Não era sentimento de economia. Era pobreza.

– Bem, então a sociedade como um todo está precisando ficar um pouco mais pobre – eu disse.

Contei também das latas. Minha mãe guardava todas as latas usadas. Sempre havia uma segunda ou terceira finalidade para as vasilhas. E durante os dias da semana usávamos os copos de massa de tomate. Os copos bons ficavam guardados, para as ocasiões especiais. Boa parte do enxoval de minha mãe sobreviveu décadas, quase sem uso.

– As pessoas não se permitiam as coisas.

– Não tenho nada contra quem aproveita a vida, usando a roupa recém-comprada, e cara, para ir a um churrasco. Mas eu não me encaixo nisso.

– Não se culpe. O mundo mu­­dou e a gente não consegue mesmo se adaptar.

– O mundo sempre mudou. Mas nos últimos anos mudou muito rapidamente.

Tomamos um gole de vinho e ficamos olhando para a mesa.

– Suicídio.

– O quê?

– Um suicídio.

– Não me venha com seus dramas. Pensar em se matar por causa de pessoas que não controlam o impulso consumista. Você já está ficando patético.

– Não estou falando no meu suicídio.

Ela ficou em silêncio. Nestas horas, o melhor é sempre deixar que eu conclua minhas ideias. Se ela tentar entender e não for bem aquilo que estou pensando, eu me irrito.

O vinho me deixara meio lerdo. Pensava mais vagarosamente, falando com espaços entre as frases. Depois de um ou dois minutos, concluí.

– Tudo é um movimento inconsciente de suicídio da humanidade. Vamos morrer todos ao mesmo tempo, e não haverá uma lágrima por nós.

– Não espero viver tanto.

– Mas, quando a humanidade morrer, todos os mortos morrerão de novo. Não é triste isso?

– Quantas?

– O quê?

– Quantas garrafas de vinho você tomou?

E este foi o primeiro momento, naquela noite, em que ficamos um pouco alegres.

– Por exemplo. Não se jogava fora uma garrafa como esta.

– Sei. Eram usadas para o leite.

– Não, para o leite eram as de vidro transparente. Estas escuras serviam para... Bem, não me lembro mais. Só sei que eram guardadas. Lavávamos as garrafas de leite com água, um pouco de sabão e arroz em casca.

Servimos a última taça de vinho.

– Mas também não tomávamos vinho português. Este é o lado bom do consumismo – ela concluiu.

– Sabe, eu tenho dificuldade de jogar as coisas fora. Separo os materiais na ilusão de que vão ser reutilizados. Mas me sinto muito vazio. Como se não tivesse mais nada dentro de mim.

– Pare de se culpar.

– Uma calça velha virava bermuda. Um chinelo de dedo arrebentava a correia e a gente a costurava ou usava a correia de outro, que tinha a sola gasta.

– Vamos dormir – ela ordenou.

Bebi o último gole. Eu me levantei para lavar a taça. Ela pegou a garrafa vazia.

– Deixa que eu levo para a lixeira – falei.

– Não vai lavar?

– Não tenho arroz com casca.

Fui até a lavanderia, onde fica o material reciclável, e joguei a garrafa sobre caixas de leite, de suco, garrafas plásticas, papel, uma babel de embalagens. Com o bico para baixo, a garrafa de vinho deixou escorrer uma lágrima rubra.

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