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Plenário do STF
Dos 11 ministros, os únicos que ainda não aderiram à tese são Kassio Marques e André Mendonça (este, por não ter votado em julgamentos)| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

As recentes críticas ao antropólogo baiano Antonio Risério, em razão do artigo no qual chamou a atenção para crimes ou discursos violentos de negros contra brancos, trouxe novamente à tona a discussão sobre o conceito de “racismo estrutural”.

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No debate que se sucedeu à publicação do texto, vários intelectuais ligados ao movimento negro, principalmente, sustentaram que não existiria algo como um “racismo reverso” – isto é, praticado por negros contra brancos – justamente em razão do caráter “estrutural” do racismo no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo.

A ideia é de que o racismo não deve ser entendido apenas como preconceito, desprezo ou ódio a determinadas pessoas em razão de características biológicas, como a cor da pele, mas constitui-se de um sistema de opressão historicamente forjado, desde a escravidão (mas que perdurou após sua abolição), para inviabilizar a ascensão social de afrodescendentes.

Os ataques a Risério chamaram a atenção de outros pensadores que contestaram a ideia de que seria essa a única maneira de definir o racismo. Um deles foi professor e pesquisador da Universidade de Nova York Pedro Franco, mestre em História Social da Cultura pela PUC Rio e especialista em liberdade de expressão.

À Gazeta do Povo, Franco criticou o fato de círculos intelectuais identitários pretenderem impor o conceito de racismo estrutural à sociedade sem que ele fosse debatido. “É uma expectativa moral inteiramente nova e, de uma hora para outra, eles esperam que as pessoas entendam essa mudança de definição – e não só entendam, mas se revoltem moralmente contra definições alternativas”, disse o estudioso.

Embora na sociedade e mesmo no meio acadêmico e intelectual o conceito de racismo estrutural ainda receba questionamentos e seja foco de divisão, no Supremo Tribunal Federal ele ganhou adesão crescente e hoje é defendido de forma majoritária pelos ministros.

Para demonstrar isso, a reportagem analisou votos dos atuais integrantes da Corte em três importantes julgamentos nos últimos dez anos relacionados ao tema, e identificou em quase todos eles (9 dos 11) consonância com o conceito de racismo estrutural, inclusive com citações a seus principais defensores no âmbito do direito e das ciências sociais.

Debate sobre racismo remonta a 2012, no julgamento das cotas

Há quase uma década, o debate sobre a desigualdade racial ganhou força no STF com a decisão que julgou constitucional a fixação de cotas para negros nas universidades públicas. Em junho de 2012, os ministros decidiram que eram legítimas “políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa” enquanto persistisse “o quadro de exclusão social que lhes deu origem”.

Relator do caso, o ministro Ricardo Lewadowski disse que as cotas serviriam para “a inclusão social de grupos tradicionalmente excluídos”. No voto, citou obra de direito do ministro Joaquim Barbosa, hoje aposentado, segundo o qual, no Brasil, as ações afirmativas teriam como objetivo “não apenas coibir a discriminação do presente, mas, sobretudo, eliminar os ‘efeitos ‘persistentes’ da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar”.

“Esses efeitos se revelam na chamada ‘discriminação estrutural’, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos dominados”, escreveu Joaquim Barbosa no artigo jurídico, publicado em 2007 e que teve forte influência na decisão de 2012.

Segundo Lewandowski, “o reduzido número de negros e pardos que exercem cargos ou funções de relevo em nossa sociedade, seja na esfera pública, seja na privada, resulta da discriminação histórica que as sucessivas gerações de pessoas pertencentes a esses grupos têm sofrido, ainda que na maior parte das vezes de forma camuflada ou implícita.”

No mesmo julgamento, ainda em 2012, ao votar favoravelmente às cotas, o ministro Luiz Fux citou um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia, segundo o qual desigualdades raciais também resultariam de “mecanismos discriminatórios que operam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”.

“O racismo institucional ou, ainda, racismo estrutural ou sistêmico [...] não se expressa por atos manifestos, explícitos ou declarados de discriminação, orientados por motivos raciais, mas, ao contrário, atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam de forma diferenciada na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes grupos raciais”, dizia o artigo do Ipea citado por Fux.

Na época, o ministro disse que, do ponto de vista jurídico, a ideia de raça não estaria ligada a aspectos biológicos, mas “deflui de fatores históricos, políticos, sociológicos e culturais”.

“A discriminação e o preconceito existentes na sociedade não têm origem em supostas diferenças no genótipo humano. Baseiam-se, ao revés, em elementos fenotípicos de indivíduos e grupos sociais. São esses traços objetivamente identificáveis que informam e alimentam as práticas insidiosas de hierarquização racial ainda existentes no Brasil”, disse Fux.

Era uma menção a uma concepção que existia desde 2003 no STF, a partir de um voto do ministro Maurício Corrêa (já falecido), para quem o conceito de raça não deveria ser compreendido a partir de um critério genético, mas decorria de um “processo político-social”.

Em seu voto, no mesmo julgamento, ainda em 2012, Rosa Weber concordou com esse ponto, e disse que a baixa presença de negros nas universidades (até o advento das cotas) e em postos altos no mercado de trabalho não era consequência “de uma recusa consciente pela cor”. “Os negros (considerados os pretos e o pardos) apresentam uma condição social e histórica específica que os afasta das mesmas oportunidades que indivíduos tidos por brancos na sociedade brasileira”, afirmou na época a ministra.

Gilmar Mendes, por sua vez, fez uma retrospectiva histórica de teses acadêmicas sobre o tema no Brasil no século passado. Citando Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Oracy Nogueira, o ministro assinalou que desde a década de 1960 esses sociólogos já questionavam a ideia de que existiria no Brasil uma “democracia racial”, muito em voga nos anos 30, em razão de nossa miscigenação, e até hoje lembrada por quem se opõe ao conceito de racismo estrutural.

“No fundo, o Brasil desenvolvera uma forma de discriminação ‘racial’ escondida atrás do mito da ‘democracia racial’. Apontaram que, enquanto nos Estados Unidos desenvolveu-se o preconceito com base na origem do indivíduo (ancestralidade), no Brasil existia o preconceito com base na cor da pele da pessoa (fenótipo)”, disse Gilmar Mendes.

Conceito de racismo estrutural ganhou ainda mais força em 2017

Em 2017, o conceito de racismo estrutural ganhou ainda mais projeção no STF no julgamento sobre a constitucionalidade das cotas para negros no serviço público. Desta vez, o relator, Luís Roberto Barroso, que não era ministro em 2012, foi ainda mais enfático na defesa dessa tese.

Ao descrever o que chamou de “racismo à brasileira”, disse que ele “não decorre necessariamente da existência de ódio racial ou de um preconceito consciente de brancos em relação aos negros”.

“Constitui antes um sistema institucionalizado que, apesar de não ser explicitamente ‘desenhado’ para discriminar, afeta, em múltiplos setores, as condições de vida, as oportunidades, a percepção de mundo e a percepção de si que pessoas, negras e brancas, adquirirão ao longo de suas vidas”, esclareceu o ministro.

Rememorou, em seguida, que o fim da escravatura não pôs fim à discriminação na população e que, após a abolição, não foram implementadas políticas públicas para integrar o negro e ex-escravo à sociedade, concedendo-lhe terras, educação ou emprego. O resultado é que ele continuou em posições subalternas, ainda que não houvesse no país leis discriminatórias.

“No Brasil, é certo, nunca houve um conflito racial aberto ou uma segregação formal. O racismo nesses trópicos é velado, dissimulado, encoberto pelo mito da democracia racial e pela cordialidade do brasileiro”, afirmou o ministro, antes de citar várias estatísticas que mostram que negros permanecem em condições de vida piores que brancos, mesmo entre os pobres. As cotas, para Barroso, seriam uma forma de promover a “redistribuição de riquezas e de poder na sociedade”, pela ocupação de cargos no serviço público federal.

O ministro Alexandre de Moraes, que também não integrava o STF em 2012, ecoou, ainda que de forma implícita, a tese do racismo estrutural. Reconheceu no voto “tratamento aviltante historicamente aplicado à população negra no Brasil”, o que legitimaria a reparação.

“A perpetuação intergeracional da desigualdade não constitui mero acaso, mas subproduto de um modelo estruturalmente injusto na distribuição das oportunidades. O que dificulta a identificação da discriminação no país é o seu escondimento sob facetas aparentemente neutras, como o mérito, a competição ou o desempenho. É a falsa ideia da inexistência de racismo no Brasil, em virtude da ocorrência da miscigenação ocorrida em nosso país”, disse.

Ainda neste julgamento, a ministra Cármen Lúcia relatou duas histórias que vivenciou pessoalmente e que ilustrariam o racismo estrutural presente na sociedade. Contou que, no início dos anos 90, ao presentear duas sobrinhas com bonecas negras, uma delas, “linda menina de pele negra”, não aceitou. A ministra perguntou o motivo, dizendo que a boneca era linda, ao que ela respondeu: “Não é não, é feia, parece comigo”.

“A família descobriu que, em algum lugar sem amor, a menina construía dentro de si uma imagem negativa de si a partir de algo que nem sabíamos [...] Ninguém nunca disse nada sobre a cor em minha casa, até onde me consta. Aquela menina é que, nas escolas onde frequentava, não se reconhecia como padrão, como modelo que não era aquele dela. Por isso ela não aceitava o meu presente”, disse Cármen Lúcia.

A segunda história era de uma menina negra que deu a ela o dinheiro e pediu-lhe para comprar um sanduíche numa lanchonete dentro da PUC de Minas. “Mas se é seu, por que você não compra?”, perguntou a ministra à menina. Eu não posso entrar aí, porque sou negra, e, se eu entrar, vão achar que o dinheiro não é meu”, respondeu ela.

Nesse mesmo julgamento, Dias Toffoli, ao votar a favor das cotas, evitou fazer grandes considerações sobre o caráter do racismo no Brasil, mas corroborou seu caráter estrutural.

Na ocasião, concordou com Luís Roberto Barroso ao dizer que a “desigualdade fática entre brancos e negros no acesso aos quadros da administração pública nada mais é do que o reflexo da desigualdade material decorrente de um racismo estrutural existente em nossa sociedade”.

Aprofundamento do conceito no STF em 2021

Uma defesa enfática do conceito foi feita em 2021 pelo Edson Fachin, quando foi relator de uma decisão que equiparou o crime de injúria racial (ofensa verbal a um negro, por exemplo) ao crime de racismo (ato concreto de discriminação, como proibir acesso a determinado local).

Nesse julgamento, que tornou injúria racial um crime imprescritível, Fachin citou o advogado e professor de direito Silvio Almeida, que diferencia racismo de preconceito e discriminação, ainda que eles possam estar relacionados.

O racismo, nessa classificação e nas palavras do ministro, consiste em “processo sistemático de discriminação que elege a raça como critério distintivo para estabelecer desvantagens valorativas e materiais”. O preconceito racial, por sua vez, “é juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertencem a um determinado grupo racializado, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias”. “A discriminação racial, por sua vez, é a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados”, escreveu.

“Homens e mulheres não são negros apenas pela cor da pele, mas pela atribuição de sentidos que apagam as riquezas de suas ancestralidades e os qualificam a partir de valores negativos, até mesmo desumanizantes (a exemplo do comum xingamento que utiliza a expressão “macaco”), que ditam a maneira de como estes sujeitos se apresentam no mundo e de como lhe são atribuídas desvantagens”, afirmou ainda Fachin em seu voto.

Kassio Nunes Marques é a exceção

No STF desde 2020, Kassio Nunes Marques só expôs melhor sua visão sobre o assunto no ano passado, no julgamento que equiparou o crime de injúria racial ao de racismo. Ele votou contra e apontou razões de ordem jurídica: disse que a injúria é uma ofensa a honra de um indivíduo, enquanto discriminações raciais atingem a dignidade da pessoa humana e até mesmo todo um grupo étnico, daí sua gravidade maior e imprescritibilidade.

Ao falar sobre o racismo em si, não usou termos ou argumentos comumente usados para caracterizá-lo como estrutural. Disse que é impossível negar que há racismo no Brasil, “chaga infame e difícil de ser extirpada” e depois enalteceu a miscigenação do povo brasileiro.

“Somos um povo miscigenado, oriundo de diversas etnias e culturas, mas felizmente nos vemos todos como um só povo, brasileiro, e assim deve ser. Por isso, é de especial importância que no nosso país, mais ainda que em outros, que o racismo seja combatido até que dele não haja mais qualquer resquício, porquanto, além de ser comportamento extremamente e repulsivo, representa perigoso fator de desagregação social, considerada a nossa realidade multiétnica”.

André Mendonça, por sua vez, nomeado em dezembro para o STF, ainda não participou de julgamentos como ministro e, portanto, não foi levado em conta nesta reportagem.

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