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Decretos sanitários do Estado
Policiamento na Bahia. Decreto estadual proíbe circulação de pessoas entre 20h e 5h em todos os 417 municípios do estado.| Foto: Alberto Maraux - SSP/BA

O retorno, nas últimas semanas, de medidas sanitárias mais restritivas em muitos estados e municípios reavivou a discussão sobre os limites da ação do poder público ao coibir a realização de atividades comerciais, a circulação de cidadãos e o descumprimento de normas estabelecidas por decretos. Nas redes sociais, há frequentes relatos e vídeos sobre comerciantes, vendedores ambulantes e até transeuntes que são conduzidos a delegacias e multados em razão da quebra de regras sanitárias determinadas pelo Estado.

Em Salvador, na Estação Pirajá, um vendedor ambulante foi levado à delegacia por ter desrespeitado o toque de recolher. Ele alegou que não conseguiu voltar para casa porque não havia mais ônibus. Também na Bahia, no município de Livramento de Nossa Senhora, um homem foi detido por transitar na rua com bebidas alcoólicas durante horário em que a circulação foi proibida por decreto.

O proprietário de uma sorveteria em São Lourenço do Sul (RS) foi detido na Operação Te Cuida RS, que fiscaliza se há atividades comerciais abertas em todo o estado do Rio Grande do Sul. Em uma postagem no Facebook que já tem mais de 1.500 curtidas, o comerciante classificou a ação policial como uma “brutalidade”. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do RS, a detenção não se deu somente pelo descumprimento do decreto, mas também por desacato a autoridade, resistência e desobediência.

Mas quais são os limites para a atuação do Estado nessas circunstâncias? O direito fundamental de ir e vir e a liberdade de exercício de atividade econômica, que estão previstos pela Constituição, não estariam sendo feridos com as medidas adotadas? A partir de quando uma ação policial pode ser considerada abusiva?

Princípio da proporcionalidade norteia restrições a direitos fundamentais

No Direito, o chamado “princípio da proporcionalidade” ampara as decisões de restrição temporária de um direito fundamental garantido pela Constituição.

André Gonçalves, pós-doutor em Filosofia do Direito pela Unicamp, explica que esse princípio “serve para fazer um equacionamento, em determinas situações, de bens da vida que estão em choque”. No caso específico do lockdown, os dois bens que o Poder Judiciário opõe ao julgar a legitimidade das restrições são o direito de ir e vir e o direito à vida.

É preciso avaliar, em primeiro lugar, se a medida é adequada à situação – no caso, se ela realmente protege o direito à vida. Nesse ponto, Gonçalves diz que a dúvida sobre a validade científica das medidas sanitárias não torna os decretos inconstitucionais. “Ainda que se possam questionar os estudos científicos que dão embasamento técnico para essa restrição, nenhum deles eu reputaria como flagrantemente inconstitucional”, diz.

Em segundo lugar, o princípio da proporcionalidade exige averiguar se a restrição ao direito fundamental é necessária, ou se haveria alguma medida menos restritiva que produziria o mesmo efeito.

Por último, é preciso julgar se a restrição a um dos direitos fundamentais se justifica no balanço de bens – no caso, se o direito à vida, que o Estado pretende proteger com as medidas sanitárias, é prioritário em relação ao direito de ir e vir.

Os três critérios se cumprem no caso específico da pandemia e, portanto, essencialmente, os decretos sanitários e as ações policiais decorrentes dele não são inconstitucionais. Mesmo que o grau de eficácia das medidas sanitárias seja objeto de controvérsia na sociedade, a Constituição e o Código Penal dão embasamento a essas medidas – o que não quer dizer que qualquer decreto de governador ou prefeito seja constitucional, ou que o Estado tenha carta branca para encarcerar quem descumprir as normas.

Em que leis se apoiam as ações policiais e a condução de infratores a delegacias?

As ações policiais que têm ocorrido nas últimas semanas se apoiam no artigo 268 do Código Penal (CP), que prevê pena de detenção de um mês a um ano e multa para quem “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. É esse o artigo que tem sido usado para justificar a condução de cidadãos a delegacias, em conjunto com os decretos municipais e estaduais que estabelecem as regras sanitárias.

Esses decretos, por sua vez, são constitucionais, com base em uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de maio de 2020 que liberou a adoção de medidas de restrição de circulação por governos e prefeituras sem autorização do Ministério da Saúde. Portanto, as conduções a delegacias, desde que estejam amparadas nesses decretos – e, claro, desde que os decretos não tentem se sobrepor à Constituição –, não são ilegais.

Já o encarceramento de uma pessoa que descumpriu uma norma sanitária tende a ser considerado um abuso. Pessoas enquadradas no artigo 268 não costumam ser presas, já que crimes com penas de até dois anos são considerados “de menor potencial ofensivo”. O mais comum é que elas assinem um termo circunstanciado de ocorrência, como explica Andrew Fernandes, advogado criminalista e sócio do Bayma e Fernandes Advogados Associados.

“A pessoa não fica presa. Em geral, o que acontece? Ela vai à delegacia e assina o que chamamos de ‘termo circunstanciado’. Nas infrações penais de menor potencial ofensivo, regra geral, você não instaura um inquérito policial, você instaura um termo circunstanciado, que é um ‘inquérito simplificado’, falando de forma vulgar. A pessoa se compromete a comparecer a uma audiência no Juizado Especial Criminal”, explica.

Por se tratarem de infrações leves, a tendência é que não se abra um processo e que o problema se resolva com uma transação penal, isto é, um acordo do Estado com o infrator – uma multa, por exemplo.

Quando os decretos de estados e municípios podem ser considerados ilegais?

Vários decretos baixados por estados e municípios nas últimas semanas fecharam atividades comerciais, restringiram a circulação de pessoas e veículos em determinados horários e proibiram aglomerações e eventos de qualquer tipo. Desde que cumpram alguns requisitos, eles são considerados legais.

Segundo Gonçalves, um decreto pode ser considerado inconstitucional de maneira imediata se propuser uma restrição absoluta do direito fundamental de ir e vir. “Toda restrição de direito fundamental tem que ser limitada no tempo, tem que estar em choque com um bem ou direito igual ou de maior valor e, sempre, para evitar o abuso do Estado, sempre deve ser de caráter amplo e genérico [isto é, que não valha somente para um grupo específico de pessoas]”, explica.

Quanto ao direito de exercer atividade econômica, que também está previsto pela Constituição, o jurista diz que um decreto só seria inconstitucional se forçasse “a vedação total, irrestrita e absoluta de realização de comércio de qualquer natureza, presencial ou virtual”.

Outro ponto importante em relação aos decretos é que nenhum deles pode instituir uma pena para os infratores. “Nenhuma regulamentação administrativa pode criar crimes. Crime só é criado por lei federal, ou seja, só em Brasília, por deputados e senadores. Nenhuma dessas normativas estaduais pode criar crimes. Aí seria flagrantemente inconstitucional.”

Quanto ao toque de recolher – isto é, a proibição total da circulação em determinados horários do dia –, Gonçalves concorda com uma recomendação recente do Ministério Público de Minas Gerais sobre uma possível ilegalidade dessa medida, que vem sendo adotada em vários locais do Brasil. Segundo o jurista, há uma “inconstitucionalidade formal” – o que quer dizer que a medida não ataca diretamente um direito constitucional, mas fere uma regra que a Constituição previu para elaboração de normas. Para Gonçalves, o decreto de toque de recolher exigiria “aprovação do Congresso e decreto de estado de sítio pelo Poder Executivo”.

O que uma pessoa que se sentiu abusada por ação do Estado pode fazer?

Uma pessoa que se sentiu vítima de abuso policial em ações de fiscalização relacionadas às medidas sanitárias pode recorrer a corregedorias policiais e ao Ministério Público (MP), segundo Andrew Fernandes.

“Se ela entender que o Estado de alguma forma exorbitou dos poderes, a pessoa pode, a depender do órgão que fez a intervenção, apurar se houve abuso de autoridade ou alguma infração tanto disciplinar quanto criminal dos agentes que fizeram essa intervenção. Aí tem tanto as corregedorias, a depender do órgão, quanto o próprio MP. Eles são destinatários dessa notícia de que a conduta foi abusiva, excessiva, que não foi de acordo com a lei etc.”, diz.

Em geral, no entanto, as ações policiais para cumprir os decretos não podem ser consideradas abusivas, ainda que o comerciante se sinta lesado pelas medidas. “Até o agente fica, às vezes, em uma situação delicada, porque não pode deixar de cumprir o que está na legislação, porque senão ele próprio pratica um crime”, esclarece o jurista.

Recursos contra as penas impostas só funcionariam em situações excepcionais, como em casos de pessoas que fossem punidas por estarem indo à farmácia ou ao pronto-socorro. Do contrário, a tendência é que o cidadão seja obrigado a pagar as multas previstas.

Quanto a um comerciante que depende do comércio para sobreviver, Fernandes diz que é possível, embora difícil, recorrer de eventuais multas, alegando, por exemplo, um estado de necessidade. “Ele vai ter que mostrar no processo que tem uma necessidade de abrir o comércio, que se ele não abrisse estaria colocando em risco outros bens jurídicos de maior envergadura”, explica.

André Gonçalves aponta que outra possibilidade – bem mais remota – é um recurso ao Poder Judiciário contra o próprio ato administrativo que decretou o lockdown, questionando o mérito desse ato. O requerente, nesse caso, precisaria levar à Justiça argumentos científicos sobre a expansão da pandemia. “Que a transmissão não se daria necessariamente pelo incremento do direito de ir e vir das pessoas, por exemplo”, diz.

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