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Manifestação do coletivo baiano “Vai ter gorda”: grupo se mobiliza por ações afirmativas voltadas para mulheres acima do peso.
Manifestação do coletivo baiano “Vai ter gorda”: grupo se mobiliza por ações afirmativas voltadas para mulheres acima do peso.| Foto: Divulgação / Redes sociais

Governar para quem? A pergunta pode parecer óbvia, mas não é. Numa sociedade fragmentada em grupos identitários cada vez mais específicos, o desafio é pesar a distribuição de recursos públicos – sempre escassos – em políticas e projetos que atendam tanto as demandas específicas quanto as universais. Para especialistas, saber lidar com a emergência dessas demandas e avaliar com exatidão quais delas são, de fato, relevantes para a sociedade é um problema de difícil solução, mas que deve ser enfrentado. Caso contrário, alertam, há o risco da perda de direção e acirramento de desigualdades.

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Um exemplo desses grupos identitários é o “Vai ter gorda”. Coletivo formado na Bahia, o grupo se mobiliza para cobrar ações afirmativas voltadas para mulheres acima do peso. Empunhando a bandeira do combate à gordofobia, integrantes do movimento protestaram, no dia 19 de janeiro deste ano, em um terminal de ônibus de Salvador. Elas reclamaram da demora na aprovação de projetos de lei específicos para essa parcela da população. Assim como outros grupos do gênero, o “Vai ter gorda”, além de ações como protestos e mobilização de membros, também se associa a partidos ou políticos simpáticos para propor projetos de lei específicos.

Entre os resultados desse trabalho conjunto, nasceram três projetos de lei, dois deles voltados para a criação do Dia de Conscientização contra a Gordofobia. Os projetos foram apresentados na Câmara Municipal de Salvador e na Assembleia Legislativa da Bahia e esperam a análise nas duas casas. Outro projeto, mencionado no protesto feito no terminal de ônibus de Salvador, é ainda mais específico: visa autorizar que pessoas obesas entrem nos ônibus da capital baiana pela porta traseira, sem passar pelas catracas. O grupo defende que usar a catraca do ônibus é um constrangimento, “algo que é extremamente violento com nossos corpos e mentes”, nas palavras do grupo.

Demandas universais ou interesses restritos?

Para a doutora em Ciência Política Maria Souto, a emergência de novos atores políticos e sociais tem se intensificando nas últimas décadas em parte devido ao fim das grandes narrativas coletivas e o fortalecimento das demandas individualistas. Segundo ela, tem-se assistido a uma substituição das grandes utopias ou projetos coletivos de sociedade pela busca da autossatisfação e a realização individual. Isso favorece o surgimento de demandas muito específicas que, embora sejam apresentadas como sendo comuns a um determinado grupo, na verdade são a externalização de um problema pontual ou até individual.

“Se uma pessoa obesa passa por uma situação vexatória na hora de andar de ônibus, por exemplo, é natural que ela não queira mais passar por isso. A questão é saber até que ponto o poder público pode atender a essa demanda específica sem comprometer outras coletivas”, diz a cientista política.

Ainda segundo ela, a participação dos mais diversos setores da sociedade é essencial, benéfico e necessário para a saúde da democracia. Mas isso não significa que todas as demandas ou posicionamentos desses grupos devam ser consideradas como relevantes. “A essência da democracia é a participação, que se dá de várias formas. Mesmo no caso de grupos que só participam do debate público para defender um determinado ponto de vista ou demanda, pode haver contribuições relevantes. Se não, há ao menos o exercício mútuo de aprender a ouvir e respeitar posições discordantes”, afirma.

Alvo das políticas públicas deve ser a maioria

O maior problema, segundo Maria Souto, é a questão de diferenciar quais demandas de grupos específicos são realmente relevantes e podem se tornar alvo de políticas públicas, ou seja, de ações organizadas pelo poder público voltadas para a resolução de um problema concreto. “Uma política pública pode ser voltada para determinado grupo identitário, mas desde que seu objetivo seja a resolução de um problema que tenha um impacto social. Numa realidade como a brasileira, não é possível se dar ao luxo de destinar recursos para questões irrelevantes do ponto de vista social. Mas, infelizmente, a pressão exagerada de certos grupos pode levar a isso”, salienta a cientista política.

Ela alerta ainda para a problematização de temas que, na verdade, não deveriam ser considerados problemas públicos ou coletivos. Isso seria comum, segundo ela, nas demandas de sindicatos ou entidades corporativas. “O discurso adotado é o de que se determinada política salarial ou pacote de benesses para um grupo específico não for aprovado, a população em geral é que será prejudicada, o que não é verdade”, exemplifica.

Esquerda como “porta-voz”

Em janeiro deste ano, o dirigente petista Alberto Cantalice, que é diretor da Fundação Perseu Abramo, entidade fundada pelo Partido dos Trabalhadores em 1996, postou nas redes sociais uma crítica às demandas identitárias. “O identitarismo é um erro. É uma pauta criada por ativistas dos Estados Unidos e que não tem similaridade com questões brasileiras. É a velha síndrome de colonizado que permeia setores ‘progressistas’. Confundem a questão central – a desigualdade – e se divorciam da realidade do povo”, escreveu ele.

De fato, comunismo e socialismo são, originalmente, alheios às causas identitárias. A realização individual e a valorização das singularidades simplesmente não fazem parte do discurso socialista ou comunista, cuja ênfase é em um projeto, como seu próprio nome indica, coletivista. Mas, nos últimos anos, as esquerdas acabaram assumindo as demandas identitárias como se fossem suas.

Em 2016, o professor da Universidade de Columbia Mark Lilla publicou um artigo no jornal The New York Times chamado The End of Identity Liberalism (O fim do liberalismo identitário, em tradução livre). No texto, Lilla tratava sobre como a esquerda norte-americana havia deixado de lado o ideal de um projeto comum e unitário da sociedade e acabou se tornando um mero “porta-voz das minorias”.

Para Lilla, haveria basicamente dois tipos de demandas identitárias. Uma delas estaria ligada à obtenção e defesa de direitos de grupos minoritários, estando mais relacionado a uma luta pela igualdade social e jurídica. Nesse grupo, se encaixariam os grandes movimentos pela igualdade racial, que buscavam reparar erros históricos se mobilizando e se valendo das instituições políticas para assegurar seus direitos.

Já o segundo tipo de demanda identitária seria focada na mudança cultural, de reconhecimento de singularidade, buscando fazer com que a sociedade reconheça o caráter “especial” de certas pessoas ou grupos. No livro “O progressista de ontem e o do amanhã”, Lilla associa esse grupo a uma “pseudopolítica de autoestima e de autodefinição cada vez mais estreita e excludente, hoje cultivada nas faculdades e universidades”.

Para ele, o resultado disso foi incentivar os jovens a se voltarem para a própria interioridade em vez de se abrirem para o mundo exterior, o que os deixou despreparados para pensar no bem comum e no que deve ser feito, na prática, para assegurá-lo.

Judicialização em vez de luta política

Embora tenha tratado da realidade norte-americana, as ideias de Lilla podem ajudar a entender o que acontece no Brasil. Por aqui, também as universidades e ambientes acadêmicos se tornaram reduto de pautas progressistas e identitárias, como já mostrou a Gazeta do Povo. Da mesma maneira como nos EUA, os partidos políticos da esquerda brasileira também adotam a defesa de pautas identitárias como se fossem suas.

Igualmente, parece haver muitas vezes desinteresse em atuar da forma política tradicional, apelando-se para a judicialização de demandas. Ou seja, em vez de se atuar pelas políticas tradicionais, mobilizando representantes políticos, apresentando projetos, promovendo discussões e debates, até se obter a aprovação de um projeto, abre-se um processo judicial para obrigar o poder público a fazer algo em prol de um determinado grupo.

No Brasil, um dos palcos preferidos para esse tipo de ação tem sido o Supremo Tribunal Federal (STF), acionado por grupos e partidos de esquerda na tentativa de impor pautas como às relacionadas à ideologia de gênero.

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