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O sebastianismo dos caboclos não era o mesmo de Portugal, onde se acreditava na ressurreição do rei | Reprodução/Museu doContestado de Caçador
O sebastianismo dos caboclos não era o mesmo de Portugal, onde se acreditava na ressurreição do rei| Foto: Reprodução/Museu doContestado de Caçador
  • Orações e imagens sacras indicam a devoção dos camponeses: eles atribuíam a São Sebastião o comando de um exército celestial, que asseguraria a vitória do movimento

Por muito tempo a­cre­ditou-se que o sebastianismo pregado pelos caboclos na Guerra do Contestado seria o mesmo que se originou em Portugal, na metade do século 16, quando da morte do rei D. Sebastião em uma batalha. O trono ficou vazio (sem herdeiros) e a família espanhola de Habsburg acabou assumindo o país. Inconformados com a situação e crentes em uma salvação divina, os portugueses passaram a acreditar no retorno do rei: a crença era de que ele ainda estaria vivo e esperando o momento certo para ocupar outra vez o trono, como uma espécie de ressurreição. Esse episódio ficou conhecido como sebastianismo e por muito tempo foi associado a diversas crenças de salvação divina, inclusive nas pregadas pelos caboclos do Contestado. Estudos mais recentes, porém, derrubam essa teoria e mostram que, no Contestado (conflito entre população cabocla e forças policiais brasileiras, travado em um território disputado pelos estados do Pa­raná e de Santa Catarina), o Sebastião cultuado é o santo protetor contra a guerra e a peste, bem diferente do de Portugal."O sebastianismo português advogava o retorno do rei à frente de um exército para restaurar a glória do país. Seria um rei-messias na história da humanidade", explica o historiador Eduardo Rizzatti Salomão, que pesquisou o tema durante o doutorado na Universidade de Brasília. Em Santa Catarina, por causa das semelhanças entre as duas manifestações, pesquisadores cogitaram que por trás da devoção ao santo ca­tólico se ocultava o rei D. Sebastião, o que, para Sa­lomão, não é plausível. "Orações, imagens sacras, profecias e brados de combate indicam que a devoção era ostensivamente direcionada ao mártir cristão e não ao rei português", afirma. Confira trechos da entrevista com o historiador.

Como se manifestou a devoção a Sebastião durante a Guerra do Contestado?

A devoção ao mártir católico ocorreu de uma maneira muito particular. Ao santo foi atribuído o comando de um exército celestial ou encantado, força sobrenatural que, segundo a crença de parcela expressiva dos rebeldes, asseguraria a vitória do movimento e inauguraria uma época de fartura e felicidade, chamada de "monarquia" ou verdadeira "lei de Deus". A crença de que a intervenção do santo promoveria a ressurreição dos devotos mortos em combate igualmente se difundiu à época da guerra.

Esse sebastianismo, então, foi o que motivou os caboclos e os manteve fortes durante o combate? E, se não houvesse essa crença, os camponeses ficariam enfraquecidos?

A religiosidade promoveu a união dessas pessoas, motivou ações e instigou a persistência de todos em nome da causa comum. Os conflitos sociais, as disputas políticas, as mudanças econômicas e a situação de penúria dos posseiros, expulsos das terras, incentivaram a rebeldia, mas o caráter do movimento foi marcado por valores religiosos. Creio que o conflito era iminente na região, entretanto, tenho convicção de que a fé religiosa foi fundamental para a definição dos rumos que o movimento tomou. Isso não significa dizer que a fé religiosa promoveu a guerra, é importante destacar. Porém, sem a ideologia religiosa, os rumos do movimento teriam sido outros e a luta teria sido comprometida.

É verdade que o sebastianismo do Contestado foi responsável por organizar, inclusive, a vida dessas vilas de caboclos?

A religiosidade foi promovedora de ordem. Os chefes rebeldes se ampararam em práticas e discursos religiosos para definir tarefas e convencer as pessoas da necessidade de se sacrificar em nome do grupo. A recompensa seria futura. Regras de convívio, normas de conduta, o compartilhamento de bens, o casamento, o batismo e a seleção de pessoas para funções-chave eram inspiradas na religiosidade dos habitantes. As "videntes" (médiuns) do movimento, orientadas pelos chefes, transmitiam mensagens atribuídas ao monge José Maria, validando o poder espiritual e temporal das lideranças do movimento.

Como eram as manifestações desse sebastianismo caboclo?

A devoção aos santos do panteão católico e santos populares, como S. João Maria, eram marcas da "santa religião". S. Sebastião desfrutou de uma preferência particular. Nos redutos, capelas eram erguidas em homenagem a ele. Durante a guerra, os rituais incluíam procissões e rezas, onde brados em louvor ao santo eram proferidos. A expressão "monarquia" era empregada para se referir à "lei de Deus" ou "santa religião", tendo nítida conotação religiosa, mas é provável que para alguns integrantes do movimento, em particular ex-maragatos, o saudosismo monárquico, como forma de governo, se fizesse sentir. Sobre os rituais, algumas fontes discorrem sobre cerimônias de iniciação, algumas envolvendo a troca do nome de batismo pelo nome de um santo. Adeodato, um dos principais líderes do movimento na fase terminal, foi renomeado de Joaquim.

Dizem que o monge José Maria teria sido enterrado com tábuas para facilitar a sua ressurreição. Isso tem a ver com o sebastianismo também?

A crença na ressurreição dos mortos é encontrada nos movimentos messiânicos e milenaristas de inspiração judaico-cristã, não sendo exclusiva do sebastianismo. Como essa ressurreição vai ocorrer em cada movimento em particular é outro assunto. Após morto no combate do Irani, José Maria recebeu atributos dignos de um messias. As profecias atribuídas ao monge discorriam sobre a sua ressurreição e a dos seguidores da "santa religião". Todos retornariam jovens para desfrutar de uma época de paz e felicidade. Nos movimentos sebastianistas brasileiros a crença da ressurreição dos devotos foi muito difundida, porém não é possível afirmar que, no caso de José Maria, essa expectativa tenha origem, em sentido estrito, no sebastianismo.

A figura de Maria Rosa (que seria a encarnação de José Maria) é outro episódio que faz parte dessa crença?

Muitos devotos acreditavam que Maria Rosa era inspirada diretamente por José Maria. Ela foi uma liderança ativa no movimento e a sua história tem muito a dizer sobre o papel das lideranças femininas no Contestado e sobre a espiritualidade dos seguidores da "santa religião". As mulheres não eram meras coadjuvantes no movimento.

Foi por causa do sebastianismo que muitos pesquisadores passaram a cha­mar o Contestado tam­bém de guerra santa?

A denominação Guerra do Contestado foi consagrada pela historiografia nacional. Para os rebeldes, o conflito em curso era a Guerra Santa de S. Sebastião. O uso dessa expressão parte, portanto, do discurso dos caboclos e acaboclados que pegaram em armas contra os inimigos da "santa religião".

O sebastianismo de Por­tugal está presente em movimentos no Brasil?

Traços do sebastianismo ainda hoje estão presentes na cultura brasileira. Em Len­çóis, no Maranhão, a lenda de que o rei D. Sebastião manifesta-se sob a forma de um touro encantado e histórias sobre o reino encoberto ainda são ouvidas. Algumas pessoas acreditam que quem acertar a estrela flamejante gravada na testa do touro libertará D. Sebastião e inundará Lençóis, de onde emergirá o reino encantado. No candomblé regional maranhense, conhecido como Tambor de Mina, há registros de que D. Sebastião era, até pouco tempo, recebido em diversos terreiros. A crença no retorno do rei encoberto, nos moldes dos movimentos sebastianistas de outrora, entretanto, perdeu espaço e fiéis, o que não significa que desapareceu por completo.

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