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Direito ao esquecimento está na pauta de fevereiro do STF
Direito ao esquecimento está na pauta de fevereiro do STF| Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar na primeira sessão judiciária do ano, na quarta-feira (3), se existe ou não o direito ao esquecimento. Mas o que isso quer dizer na prática? O que os ministros vão analisar é se informações, fotos e dados publicados sobre um indivíduo podem ser retirados dos sites, dos buscadores, de qualquer outro meio físico ou audiovisual a pedido de uma pessoa ou da família dela.

O caso concreto que será julgado pelo STF é uma ação movida por familiares de Aída Curi, o Recurso Extraordinário (RE) 1.010.606. Ela foi assassinada em 14 de julho de 1958, aos 18 anos, no Rio de Janeiro. Quase 50 anos depois, em 2004, o programa Linha Direta, da Rede Globo, reconstituiu a história. A emissora utilizou fotos de arquivo e simulações do que teria ocorrido à época. Os familiares da vítima entendem que recontar essa história fere o direito ao esquecimento. Apesar de se tratar de informações veiculadas em um programa de televisão, como o julgamento tem repercussão geral, a decisão que for tomada afetará outras ações similares no país referentes a exposição de dados em outras plataformas - principalmente a internet.

Mesmo não descrito de forma expressa na Constituição Federal de 1988, o direito ao esquecimento tem aparecido nos tribunais brasileiros, também por inspiração de decisões em outros países. De acordo com o professor Flávio Martins, pós-doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, alguns magistrados brasileiros têm entendido que o direito ao esquecimento decorre do direito à privacidade - mesmo raciocínio adotado em muitos países europeus e na América do Norte.

Ele explica que se trata de um direito novo e relacionado em essencial à internet, já que com poucos cliques é possível rememorar fatos ocorridos no passado. “Antes, com o passar do tempo, as pessoas, os jornais e a sociedade se esqueciam de fatos desagradáveis sobre qualquer pessoa. Agora, com as novas tecnologias, principalmente com a internet, esses fatos nunca são esquecidos. Basta fazer uma pesquisa em qualquer site, como o Google, que você vai encontrar uma informação de 20 ou 30 anos atrás. É graças às novas tecnologias que se reconheceu o direito ao esquecimento”, salienta Martins, que também é autor de uma série de obras na área do Direito Constitucional pela Saraiva Jur.

Alguns juristas temem que o direito ao esquecimento, caso seja autorizado, possa ser utilizado como uma forma de censura ou para apagar dados de interesse público após pressões políticas ou econômicas. “A premissa é de que a melhor forma de se alcançar a verdade é num debate público, em que todos possam ter a possibilidade de se exprimir, e porque essas liberdades, ao fim e ao cabo, são instrumentos para a garantia de todos os direitos. (...) A garantia do direito à vida, enfim, a garantia de todos os direitos fundamentais, em boa parte, está ligada a essas liberdades públicas. Não há nenhuma razão pela qual se deva restringir essas liberdades ou afirmar que elas têm força exclusivamente em relação a fatos, eventos e informações contemporâneas. Fazê-lo significa negar a importância da própria história”, disse Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UERJ, em audiência pública no STF, representando a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e da Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER).

“O direito ao esquecimento, muitas vezes, é invocado para se impedir determinadas publicações, para se desindexar, enfim, de provedores de busca, determinadas ligações. Mas ele também vem sendo exercitado (...) no afã de se obter reparações pecuniárias, por vezes, por danos, ou por danos morais cumulados com danos materiais”, continuou. E citou a famosa frase de George Orwell em 1984: “Aquele que controla o passado, controla o futuro; aquele que controla o presente, controla o passado”.

Por outro lado, advogados como Blanca Albuquerque, do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em proteção de dados pessoais pelo Data Privacy Brasil, acreditam que o direito ao esquecimento pode ser perfeitamente equilibrado com outros direitos. "De um lado, temos a privacidade, a intimidade, a honra e o uso da imagem - que são premissas da dignidade humana. Do outro lado, temos princípios igualmente importantes: a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. Robert Alexy, bem como [o ministro] Alexandre de Moraes, afirmam que quando há um conflito entre dois ou mais direitos e garantias fundamentais, a pessoa que vai interpretar a norma precisa fazer uma coordenação e combinar os bens jurídicos em conflito", destaca.

Na opinião dela, essa é a ponderação que deveria ser feita pelo juiz ao analisar individualmente cada pedido que chegar à Justiça para retirar uma informação da internet ou de qualquer outro meio. Trata-se de um fato histórico? É uma informação que ainda é relevante para a sociedade? Refere-se a um fato que diz respeito a todos ou é um dado particular e que só diz respeito a um determinado indivíduo? Em um determinado caso, o direito da sociedade de ser informada sobre os fatos se sobrepõem ou não ao direito do indivíduo de resguardar a sua privacidade?

Além disso, segundo Blanca, para requerer a retirada de uma informação de qualquer meio seria necessário apresentar uma motivação plausível para esse pedido.

Crimes

Um dos pontos que mais geram questionamentos diz respeito ao fato de que pessoas que cometeram crimes também poderão solicitar a retirada de dados da internet. Para os dois especialistas ouvidos pela reportagem, isso deverá ser garantido àqueles que foram absolvidos ou aos condenados que terminaram de cumprir suas penas - do contrário, essas pessoas poderão continuar sendo julgadas pela sociedade ad aeternum.

Martins também ressalta que, mesmo que as informações sobre crime e condenação sejam retirados do Google, por exemplo, a ficha criminal de uma pessoa jamais será apagada dos registros públicos do Estado.

“Por mais que se reconheça o direito ao esquecimento, as informações nunca serão apagadas dos registros públicos. Elas podem ser 'apagadas' dos atestados de antecedentes criminais - aquilo que você pede para apresentar ao empregador. Mas da sua folha de antecedentes - aquilo a que o Estado tem acesso - nunca será apagado. Portanto, o Estado saberá tudo o que você fez no passado. Mas isso não implica que a sociedade também tenha o direito de vasculhar o seu passado de 20, 30 anos atrás”, opina o professor de Direito Constitucional.

Liberdade de imprensa

Mesmo assim, os limites da liberdade de imprensa e de acesso à informação devem ser o principal ponto de discussão durante o julgamento. A avaliação de Blanca Albuquerque é de que o direito ao esquecimento não implicará em censura ou cerceamento ao trabalho da mídia. Para ela, a ponderação na análise dos casos concretos por parte do Judiciário pode evitar que sejam cometidos excessos tanto por parte da imprensa quanto por parte de quem almeja fazer uso desse direito.

“Nenhum direito fundamental é absoluto. Temos direito à informação e de saber o que acontece no país. Mas eu não tenho o direito de invadir a intimidade de pessoas quando não há mais interesse público sobre uma informação”, complementa Martins.

Flávio Martins, entretanto, também demonstra preocupação sobre possíveis ações contrárias à liberdade de imprensa, como ocorre em várias partes do mundo e cita exemplos. O primeiro vem da China, onde a jornalista Zhang Zhan foi condenada a quatro anos de prisão por reportagens sobre o auge da pandemia em Wuhan. O segundo ocorre na Venezuela, país em que jornais foram fechados e canais foram retirados do ar pelo governo do ditador Nicolás Maduro. O último exemplo mencionado pelo professor diz respeito a agressões a profissionais de imprensa e à destruição de equipamentos durante a cobertura da invasão do Capitólio, prédio que abriga o Congresso norte-americano.

“Eu tenho muito receio das restrições contínuas à liberdade de imprensa. Só acredito que com uma democracia forte - e com a consciência do povo de que a liberdade de imprensa é um dos pilares dela - conseguiremos defender os direitos fundamentais”, opina o professor de Direito Constitucional.

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