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Uma das raras fotos da Colônia Cecília, experiência anarquista idealizada no século 19, no interior do Paraná, pelo italiano Giovanni Rossi (no detalhe) | Fotos: Reprodução
Uma das raras fotos da Colônia Cecília, experiência anarquista idealizada no século 19, no interior do Paraná, pelo italiano Giovanni Rossi (no detalhe)| Foto: Fotos: Reprodução

Razões para o fracasso

Conheça alguns aspectos que contribuíram para que a Colônia Cecília acabasse e as polêmicas em torno da comunidade:

Terra fácil

- Quem chegava da Itália para viver na Colônia Cecília logo percebeu que não era difícil comprar um pedaço de terra no Paraná. Havia muitas regiões a serem exploradas e, quando qualquer desentendimento ocorria na comunidade, ficava fácil sair dali e começar a vida em uma outra propriedade rural. Alguns dos antigos integrantes viraram grandes fazendeiros.

Contrariados

- A promessa de uma vida melhor, já que na Itália a situação estava crítica, fez com que muitos italianos agricultores deixassem a Europa e viessem para a Colônia Cecília sem ter qualquer simpatia pelo anarquismo ou pelo movimento anarquista. Quando chegaram aqui, os desentendimentos aumentaram e muitos abandonaram a colônia.

Desorganização

- Rossi começou a fazer campanha na Itália (inclusive em jornais da época) dizendo para as pessoas virem até a Colônia Cecília para recomeçar a vida. Houve épocas em que chegaram muitas famílias e que faltou comida e terra para todos. Já em outras épocas faltaram pessoas para trabalhar. Além disso, alguns integrantes, apesar de anarquistas, começaram a trabalhar na manutenção e na construção de estradas a serviço do governo – uma maneira de colocar dinheiro na colônia.

Roubo

- Todo o dinheiro arrecadado na colônia (inclusive com a venda de produtos produzidos no local) ficava em uma lata. Quando alguém precisava, era só pegar o valor necessário. Um espanhol "boa pinta" que apareceu por lá furtou o dinheiro e fugiu. Isso não contribuiu necessariamente para a falência da comunidade, mas mostra a desorganização do grupo.

Cada um por si

- Nos momentos de crise, as famílias começaram a guardar (e esconder) alimentos para dar a seus filhos, infringindo a ideia anarquista de divisão comum.

Casas prontas

- Quando fundaram a colônia, já havia residências nas terras compradas. O pessoal começou a ocupar as casas, o que foi contra o princípio anarquista de uma sociedade não individualizada. Existia apenas um galpão, que era a cozinha comunitária e onde ocorriam as reuniões.

O fim

- Quando as pessoas abandonaram o local, uma das famílias ficou, quitou a dívida da terra e é ainda a atual proprietária. O local não é aberto à visitação. A família teme que o governo desaproprie a área para fazer um parque. O poço que existia no local (único resquício da colônia) foi coberto de pedras.

Errado

- Duas interpretações acabam distorcendo o que foi a colônia. Os anarquistas de hoje querem dizer que se trata de uma espécie de movimento hippie e que o anarquismo lá deu 100% certo. Outra linha diz que muitos descendentes camuflam um pouco do que havia de mais ousado ou questionador na colônia.

Fonte: Miguel Sanches Neto e o livro O anarquismo experimental de Giovanni Rossi.

Atuação sindical

Na origem do movimento operário

Dizem que parte dos descentes da Colônia Cecília veio para Curitiba e foi morar na Colônia Dantas (atual bairro Água Verde), mas não há comprovação disso. O fato é que as três principais cidades que receberam os "cecilianos" – aqueles que permaneceram com suas ideias anarquistas e não ficaram no campo – foram São Paulo, Curitiba e Ponta Grossa.

Os que continuaram se dedicando à atividade rural foram para a região onde atualmente fica a Colônia Santa Bárbara (perto de Palmeira). Até os dias de hoje existe no local a casa de um dos filhos dos integrantes que era conhecido como Pipão.

Em Curitiba, "documentos apontam como de responsabilidade de alguns remanescentes da colônia o primeiro movimento operário de protesto e reivindicação que teria deflagrado a primeira greve dos ferroviários em busca de melhores condições de trabalho", segundo o médico Candido de Mello Neto. "Eles foram uma contribuição importante ao Brasil porque trouxeram visões diferentes de mundo e entraram dentro do sistema intelectual e cultural brasileiro de visão esquerdista", afirma o escritor Miguel Sanches Neto.

Em São Paulo, o registro mais emblemático se refere aos avós da escritora Zélia Gattai (esposa de Jorge Amado), que pertenceram à Colônia Cecília e que mais tarde, na capital paulista, também levantaram a bandeira do movimento sindicalista e operário. (PM)

A Colônia Cecília nada mais foi do que uma experiência anarquista no Paraná. É importante destacar a palavra experiência, pois é ela que derruba todas as lendas e histórias inventadas em torno dessa comunidade. Dizem, por exemplo, que o imperador dom Pedro II doou algumas terras aos primeiros italianos anarquistas que aqui chegaram para implantar essas ideias no estado. Na verdade, a história mostra que as seis pessoas que fundaram a colônia nem pretendiam parar no Paraná, nem tiveram contato com o imperador. O italiano Giovanni Rossi, tido como o fundador, pretendia instalar uma colônia experimental anarquista no Uruguai, por isso a intenção inicial era chegar ao Rio Grande do Sul. O mal-estar da longa viagem, que afetou dois membros do grupo, fez com que eles desembarcassem em Paranaguá. Resolveram ficar, entraram em contato com a Inspetoria de Terras e Colonização e compraram alguns alqueires perto do município de Palmeira, por meio de um parcelamento.

A lenda diz ainda que Rossi pretendia transformar o Paraná em um país socialista. Mas ele não conhecia o estado e não dizia que sua experiência deveria ganhar tamanha proporção. "Rossi era um cientista social e quando veio para cá queria criar apenas um laboratório para experimentar se era possível viver dentro do sistema anarquista", afirma o escritor Miguel Sanches Neto, autor do livro Um amor anarquista. Sanches, que pesquisou o assunto para escrever o romance baseado em fatos reais, lembra que, no final do século 19, havia uma hegemonia do pensamento científico em todo o Ocidente (Darwin na bio­logia e o Naturalismo na literatura, por exemplo), por isso "acreditava-se muito na ciência e que por meio dela se modificaria a compreensão do mundo". O que quer dizer que Rossi teve seu espaço para a pesquisa também.

O cotidiano

Graças ao trabalho do médico paranaense Candido de Mello Neto, que resultou no livro O anarquismo experimental de Giovanni Rossi, é possível saber realmente o que foi a Colônia Cecília. Mello viajou durante dez anos pela Europa e pelo Brasil para pesquisar a experiência e traduziu cartas e ensaios de Rossi. Ainda criança, chegou a conviver com pessoas que estiveram na colônia.

A Colônia Cecília chegou a ter 250 integrantes, não necessariamente seguidores do pensamento anarquista. Ela existiu de 1890 a 1894 e as dificuldades começaram logo após sua constituição. Entre os idealistas que aqui chegaram havia filósofos e alguns músicos (sopranos e tenores) que não tinham nenhuma habilidade com a terra. "A Colônia Cecília nascia pobre, sem assistência, sem discursos e aplausos. O duro contraste entre teoria e prática se apresentou nos primeiros dias ao grupo de pioneiros idealistas. Traziam pouca experiência para cumprir os ideais de sobrevivência de uma colônia agrícola", afirma Mello em um trecho de seu livro.

Em uma passagem, o autor conta que a cerca levantada caiu por falta de habilidade e que os animais invadiram o que seria uma plantação de milho. Os vizinhos, uma comunidade polonesa, foram solidários no início e deram porcos e uma vaca aos novos moradores. Mas, ao saber dos ideais dessas pessoas, os poloneses os isolaram e os discriminaram.

Filhos da comunidade

Se hoje é difícil entender os ideais anarquistas, o que dizer na época de uma comunidade experimental sem religião, que negava a propriedade individual e queria provar que a produção poderia se dar em um ambiente coletivo, sem chefes ou hierarquia, onde o trabalho era feito conforme as aptidões das pessoas e de acordo com sua vontade. E o mais estranho para um período tão conservador: as mulheres não se casariam e se relacionariam com mais de um homem. As relações seriam baseadas na teoria do amor liberto, sem ciúmes e sem mentira. "Na prática, só existiram dois casos que eles chamaram de casamento poliândrico. A proposta era de que as crianças que nascessem não teriam pai [e por consequência não haveria transmissão de posses] e seriam filhas da comunidade", diz Sanches Neto.

A questão é que nem todos que moravam na colônia eram simpatizantes dessas ideias. Não tardaram, então, para aparecer descontentamentos e conflitos. "A maior parte dos casais permaneceu monogâmica e as famílias que ali viviam não gostaram de saber que a comunidade ficou estigmatizada de promíscua", afirma Sanches. A ideia de Rossi, porém, era outra: constituir relações puras e abertas entre homens e mulheres. Ele mesmo descreveu que essa intenção havia fracassado. O amor liberto foi tão fracassado que o próprio Rossi acabou se casando e depois retornou à Europa, onde criou os filhos dele e dos outros dois homens que sua mulher teve. Morreu após constituir uma autêntica família burguesa.

Exposição

Em um dos corredores do Mercado Municipal de Curitiba, essa história será recontada por dois descendentes da Colônia Cecília, Ilsa Agottani e Mauricio Mezzadri Pi­­canço. Apesar de serem da terceira e quarta geração, respectivamente, e não terem um volume considerável de informações – tudo o que era da colônia praticamente se perdeu –, eles juntaram esforços para criar um museu que vai mostrar um pouco dessa história.

No próximo sábado, às 18 horas, serão expostos objetos que pertenceram a gerações posteriores à da colônia, além de fotos e postais dos membros da comunidade que contam como foi, por exemplo, a viagem da Itália para o Brasil. A exposição ficará por cinco dias no setor de Orgânicos do mercado e voltará a ser mostrada em novembro, com a reinauguração após a reforma do local.

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