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No sentido horário, as condições em que os Mello viviam no barraco de chão batido, na zona rural de Mangueirinha, em 2004, e hoje num conjunto habitacional. Abatimento deu lugar ao sorriso |
No sentido horário, as condições em que os Mello viviam no barraco de chão batido, na zona rural de Mangueirinha, em 2004, e hoje num conjunto habitacional. Abatimento deu lugar ao sorriso| Foto:

Pesquisas divergem sobre número de miseráveis

A família Melo está longe de ser uma exceção no Brasil, e mesmo no mundo. Tanto que em 2000 a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou os oito objetivos do milênio, conjunto de metas adotadas por 189 países que começa por reduzir pela metade, até 2015, o porcentual da população que estava em situação de miséria em 1990. Em 2005, o governo brasileiro foi além e prometeu reduzir a indigência a 25% do que existia em 1990, além de acabar com a fome até 2015. Contudo, as diferentes metodologias para quantificar a pobreza no país levam a uma dúvida: em que Brasil acreditar? Naquele que já atingiu a meta da ONU ou naquele que tem mais miseráveis do que as Nações Unidas imaginam?

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  • Tratamento médico extraiu os bichos-de-pé de Luís Gabriel, revelado em foto de 2004

Quando o carro estaciona em frente da última fileira de casas, Luís Gabriel irrompe porta afora num sorriso moldado pelos dentes alvos. Antes que se pudesse olhar para seus pés, motivo primeiro da longa viagem, a mãe surge às carreiras e, a plenos pulmões, anuncia a quantos puderem ouvir: "São eles, são eles". Outros vão se chegando e, ao cabo de cinco minutos, a família se reúne em torno dos dois velhos conhecidos. Estavam todos: Luís Gabriel, Natalino, Fernando, Graciele, Franciele e a mãe, Sandra Mara Alves. Do pai, Adão Batista Rodrigues de Mello, não se tem notícias desde que desaparecera, há quatro anos. Lamentos à parte, há muito a comemorar.

O sorriso de Luís Gabriel e a euforia de agora demonstravam não ser a mesma família descoberta ao acaso cinco anos antes às margens da rodovia PR-281, na zona rural de Mangueirinha, cidade de 17 mil habitantes ao Sul do Paraná. Tratava-se, à época, de uma família gradativamente devorada pela miséria, dilacerada física e psicologicamente pela exclusão social e cultural. Luís Gabriel, então com 5 anos de idade, nascera saudável, mas já não podia correr nem jogar bola com os irmãos. O caçula dos Mello estava prestes a perder parte dos movimentos dos pés. A causa era a pobreza, a falta de informação, o desânimo, a omissão do estado.

Luís Gabriel morava com os pais e os quatro irmãos num casebre com chão de terra batida, teto de lona plástica, sem água encanada nem energia elétrica. Dormiam em colchões sobre a terra úmida, com cinco cães e quatro gatos, única distração dessas crianças perdidas num vazio social. Passavam todo o tempo descalças, e assim adquiriram o problema que vitimou o menino. Embora parecesse doença grave, tratava-se tão somente de bichos-de-pé, larva de um inseto semelhante à pulga, comum na praia e no chão batido. A infecção pode ser extirpada com facilidade, mas nesse caso estava prestes a causar desde a perda de movimentos até a amputação dos dedos, simplesmente pela desatenção dos pais.

Problema corriqueiro, desses que se resolve em casa mesmo, com agulha e álcool, para Luís Gabriel tornou-se tão grave que exigia atendimento médico urgente. O menino tinha de caminhar com os dedos erguidos, sem poder tocar o solo, por causa da dor. Não podia usar sapatos nem correr com os demais porque as feridas já deformavam os pés. O comodismo e a falta de atenção a Luís Gabriel decorriam do baixo nível educacional e cultural, sintomas do atraso que transformou os Mello em versão contemporânea do Jeca Tatu, o caipira sem perspectiva (e infestado por bichos-de-pé) descrito por Monteiro Lobato em Urupês, livro de 1918.

O sustento da família vinha do serviço temporário de Adão nas roças da vizinhança ou da venda de pinhão às margens da estrada durante o inverno. A comida era pouca e obrigava-os a um rodízio. Na engenharia da sobrevivência encontrada pelos Mello, quem comia bem num dia, tinha de comer menos nos próximos, para que os sete pudessem se saciar totalmente pelo menos uma vez por semana. A chance de escapar da vala da indigência era a educação escolar, oportunidade que os pais não tiveram. Os mais velhos estudavam na escola pública do distrito de Covó, a 10 quilômetros. O caçula Luís Gabriel e o irmão Natalino, então com 7 anos, ainda não iam à escola.

Em 3 de julho de 2004, a Gazeta do Povo publicou reportagem com a foto do menino tomado pelos bichos-de-pé. Enquanto o então prefeito de Mangueirinha, Miguel Carlos Rodrigues de Aguiar, recorria à rádio local para atribuir a matéria a uma encomenda da oposição, cartas de solidariedade aos Mello chegavam de todo o estado à redação do jornal. A Pastoral da Família recolheu as doações de roupas, comida e brinquedos. Os Correios fizeram a entrega. Luís Gabriel recebeu tratamento médico e os Mello acabaram incluídos no programa de habitação popular.

Foi na casa nova, de dois quartos, sala, cozinha e banheiro, com energia elétrica e teto sem goteira, que no último dia 13 de maio a equipe de reportagem os re-encontrou. As crianças, antes isoladas na zona rural, agora vivem em sociedade e recebem visitas de agentes de saúde. Luís Gabriel até joga futebol no time da escola. O pai desapareceu há quatro anos e nunca mais se teve notícias dele, mas a mãe, Sandra Mara Alves, garante o sustento de todos com serviços de faxina e com o dinheiro do programa Bolsa Família.

A inclusão no programa de baixa renda garante isenção na conta de água e eles ainda recebem uma cesta básica por mês, mais benefícios eventuais como a regularização dos documentos. Sandra e as crianças recebem visitas frequentes da equipe do Estratégia Saúde da Família, com atenção médica e psicológica, além de visitas periódicas do Departamento Municipal de Ação Social. Com a frequência escolar acompanhada pelo Conselho Tutelar, Luís Gabriel, hoje com 10 anos, Natalino, 11, e Fernando, 13, estudam na Escola Municipal Odila Garcez. As mais velhas, Graciele, 15 anos, e Franciele, 16, frequentam a Escola Municipal Valêncio Dias.

O que chama atenção dos Mello agora não são os bichos-de-pé, e sim o sorriso constante, inclusive de Graciele, embora avessa a fotografias. Cabisbaixa, olhar soturno, há cinco anos Sandra não abria a boca com vergonha do único dente na boca e das más condições da família. Hoje, mesmo banguela, aos 33 anos, encontrou motivos para sorrir. "Acho que agora meus filhos têm alguma chance na vida", diz. Os Mello finalmente descobriram o que até então desconheciam: a autoestima.

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