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O escritor paranaense Domingos Pellegrini, 63 anos, lembra em detalhes o dia em que se tornou leitor. Era guri de calças curtas e encontrou na sua casa uma pilha de revistas Manchete e O Cruzeiro, ali deixadas por um pintor de paredes, para serem usadas na forração do chão e limpeza dos pincéis. O dono nunca mais voltou para apanhá-las. E Domingos fez bom proveito do esquecimento, lendo e relendo a coleção. "Eu me fiz leitor nas páginas das revistas", conta.

O resto veio a galope – aos 14 anos descobriu a poesia; aos 20 e tantos era o autor do premiado O homem vermelho, que lhe garantiu um prestigiado Prêmio Jabuti de Literatura e a certeza de que tinha encontrado seu ofício. Desde então, foram 25 livros, incluindo O caso da Chácara Chão, que lhe rendeu o segundo Jabuti, e o épico Terra Vermelha, no qual revisita a colonização da cidade de Londrina, onde mora. "Vivo do que escrevo", diz o autor, conhecido pelo, como se diz, "gênio forte".

Mas o polemista é de paz, principalmente em se tratando de leitura. É leitor sem preconceito, capaz de devorar manuais de agricultura, compêndios de guerra e tratados científicos. É nessas andanças por gêneros sem fronteiras que encontra e desenha seus personagens.

Com Domingos, a palavra.

Como nasceu o leitor Domingos Pellegrini?

Quando meus pais se separaram, em 1958, eu tinha 9 anos e minha mãe foi morar em Assis, no interior de São Paulo, onde mandou pintar a casa alugada. O pintor deixou duas pilhas de revistas O Cruzeiro e Manchete, usadas para cobrir o piso contra respingos. Comecei a ler, me apaixonando e passando a esconder no guarda-roupa as que ainda não tinha lido. O pintor nunca voltou para buscar e eu li e reli todas. Minha iniciação nas letras não foi com literatura, mas com jornalismo.

Quem o influenciou?

Depois das revistas li um escritor que nunca escreveu uma linha, Esopo, cujas fábulas foram perpetuadas oralmente na antiga Grécia. Passei a ler metro a metro as bibliotecas públicas e as bibliotecas dos colégios das cidades onde moramos – Assis, Cornélio Procópio, Marília, depois Londrina novamente. Aos 13 anos, era tão apaixonado por poesia que sabia de cor muitos poemas de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e até os imensos poemas "Vozes da África" e "Navio Negreiro", de Castro Alves. Em mim, o dom da escrita foi precedido pela paixão da leitura.

E o escritor Domingos...

Não decidi ser escritor. Fui possuído. Um dia, aos 14 anos, vi em Marília um filme do Mazzaropi, em que um escravo era açoitado no pelourinho. Saí tão pasmado do cinema que meu amigo Álvaro César Mesquita Serva ficou bravo, porque falava comigo e eu não conseguia responder. Em casa, escrevi meu primeiro poema: "Negro velho, carapinha em neve / negro novo, coração em fel"... Só me lembro desses dois versos, mas não esqueço que assim fui premiado pela loteria genética com o dom literário.

O escritor Domingos vive da literatura?

Sonhei ser escritor profissional desde o tempo em que se dizia que, no Brasil, só havia dois escritores profissionais, que viviam da e para a literatura, Jorge Amado e Érico Veríssimo. Perseverei, abandonando perspectivas no magistério, no jornalismo e na publicidade, para atender ao coração que pedia dedicação ao dom. Até porque escrever era e é o que mais gosto de fazer. Há 20 anos vivo de e para a literatura.

Quais são seus livros de cabeceira?

Leio romances, psicologia, antropologia, sociologia, história, biografias, não só na cama como no vaso sanitário, na poltrona da sala, na rede da varanda e no pesqueiro. Recentemente reli Os Sertões, ganhando, enfim, a coragem de me dizer e aos outros que, apesar de continuar o livro mais empolgante que já li, sua primeira parte (A Terra) é dispensável de tão chata. Essa independência de espírito é a maior conquista que a leitura me deu.

Numa frase: por que a leitura é tão importante

Sem leitura, é uma sociedade. Com leitura, é uma civilização.

O que diria aos jovens?

Que a leitura é indispensável. Quem lê, consegue mais, vê melhor e sente mais, vive melhor.

O que lhe impressiona na história da leitura?

Os países chamados desenvolvidos assim se fizeram com leitura de massa, há uns 200 anos, tocada pelas igrejas – para as pessoas lerem a Bíblia e cantarem os hinos. Pelos quartéis – para terem soldados habilitados a lidar com as armas e guerras modernas. Pelas indústrias – para terem operários mais capazes. E pelas famílias, preparando seus filhos para as igrejas, os quartéis e as indústrias. A urbanização e a alfabetização se casaram e daí nasceu a civilização moderna que o Terceiro Mundo inveja do Primeiro Mundo. Não é à toa que em qualquer ônibus ou metrô europeu há muita gente lendo.

No seu caso, a leitura é um hábito, uma obrigação ou uma questão de prática?

Para mim, a leitura é antes de tudo um prazer. Se me perguntarem que livro levaria para uma ilha deserta, responderei que troco a ilha por uma biblioteca.

É necessário abdicar de alguns "afazeres" para ler um livro?

Quem tem tanto afazeres que não tem tempo para ler, decerto é porque não leu e por isso tem tantos afazeres. Também não é à toa que o trabalho é mais braçal quanto menos leitura a pessoa tem.

Há temas certos para lugares e momentos mais apropriados?

Sim. Não se deve ler em terremotos, porque até tablet balança.

Você imagina que no futuro a população poderá se arrepender por ler pouco – especificamente no Brasil? Por quê?

A população se arrepende só quando a sua geração já perdeu a chance histórica. E a História é implacável. Só cobra de quem já não tem mais como pagar, pois as oportunidades passaram. E só há oportunidades para quem sabe pegar em vez de receber.

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