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Distinto cavalheiro

O costureiro é mestre, mas também operário. Até hoje , seu Eleuther desenha – com uma facilidade impressionante –, modela – algumas vezes no corpo, técnica chamada moulage –, corta e acompanha a prova. As linhas dos bordados são desenhadas manualmente por ele. "A capacidade está em fazer, não em mandar." No ateliê tem fama de exigente. "Ele faz o molde, passa para a contramestra e tem um olho clínico para apontar os erros", conta Irineu Cardoso, 77, amigo e companheiro, que testemunhou o arremate do primeiro vestido de Eleuther em Curitiba. "Foi para uma debutante do Clube Concórdia", recorda-se Cardoso. Lá se vão 47 anos... Eleuther é um senhor distinto, de estatura mediana. Não encarna o estereótipo do costureiro afetado, a exemplo de seus contemporâneos Dener e Clodovil. Já decepcionou uma freguesa por causa disso – para não perder a piada, pediu licença, entrou de novo no recinto, desta vez com gestos afeminados. Ti-ti-ti,ainda não viu. "Eles exploram a mariquice da coisa. No fundo não é isso. Tem de ter basicamente cultura para entender as mulheres e a sociedade. Todos nós temos um lastro. A formação é muito importante para o costureiro. Não posso desenhar um vestido para você se não a conheço."

Eleuther de Alencar Guimarães Vianna

Ele nasceu numa casa aristocrática da Paranaguá "dos tempos da delicadeza", mas brincava carnaval, o que fez a diferença. Ainda menino, conheceu os rigores do claustro beneditino – chegando à juventude sob o som do canto-chão e o beneplácito dos ícones. Depois se esbaldou no Rio de Janeiro dos tempos de JK e da bossa nova. De volta ao Paraná, viveu uma Curitiba que dava adeus aos bons modos e aderia ao bom gosto. Em seu templo – um apartamento entre tantos do Centro – todas essas histórias se costuram. Sem ti-ti-ti.

Uma das características que distingue um vestido de alta-costura de outro qualquer é que, do avesso, o acabamento é impecável. Não há alinhavo torto, linha solta, o toque é ainda mais macio do que o do lado de fora, já que estará em contato com o corpo de uma mulher. Eleuther de Alencar dos Gui­marães Vianna, 84 anos, é um homem formal. Senta-se ereto para conversar e, rapidamente, seu falar elegante e o desencadear lúcido de seu pensamento contagiam o interlocutor. Mas assim como uma peça de alta-costura, essa é apenas a superfície. No íntimo, o mais ilustre costureiro curitibano é encantador, um homem respeitado pelos funcionários, admirado pelos amigos e ainda muito requisitado pelas clientes. Seus alinhavos são perfeitos.

O ateliê, na sobreloja de um alto e distinto edifício no Centro, não ostenta placa de identificação. No som abafado do salto que sobe as escadas acarpetadas, deixamos a cidade barulhenta para trás e vamos ao encontro de uma Curitiba que não mais existe. Móveis clássicos, lustres de cristal, obras de arte, um cenário austero, salpicado de manequins com vestidos de noiva e trajes de gala que podem ter sido usados há 30 anos ou estrearão na semana que vem num casamento no Country Club.

Tudo é surpreendentemente atual. O octogenário mantém uma coleção invejável de revistas de moda nacionais e estrangeiras, algumas encadernadas e colocadas na estante com o cuidado que se teria com um Dostoievski. Tudo o que diz sobre moda lhe é de direito: "Não existe nada de novo em se tratando de moda. Tudo o que se faz hoje já se viu em monumentos célebres."

Bisneto do Visconde de Nacar, Eleuther nasceu no ano de 1926, em Paranaguá. Pode-se dizer em berço esplêndido. Seus pais, Erina e João Vianna, se casaram em Curitiba, em uma manhã de 1908, numa cerimônia oficializada por Monsenhor Celso Itibe­­­rê. Logo desceram para Parana­­guá. O pai havia comprado e mobiliado com requinte um casarão onde nasceriam os quatro filhos do casal, dos quais Eleu­­ther é o caçula.

O jovem Eleuther cresceu em uma casa intelectualizada, aprendeu piano, pintura e, gosta de frisar, civilidade. O pai, inspetor da Alfândega, escrevia. A irmã falava francês. Os Gui­ma­­rães Vianna faziam parte do círculo de clãs fechados das famílias parnanguaras. Da infância, ele guarda algumas ternas lembranças, como as matinês de carnaval do Clube Literário, quando fazia parte do bloco da dona Xaguana Gomes de Sá Cardoso, sempre campeão. Xaguana se empenhava pessoalmente na organização do bloco e acabou por conquistar a simpatia do menino, que certa vez organizou uma vaquinha para presenteá-la em seu aniversário, 24 de fevereiro, aquele ano em pleno carnaval. "Ele deu a ela uma saladeira de cristal com os pratinhos. Tenho um até hoje", recorda-se a jornalista Rosy de Sá Cardoso, 84, filha de Xaguana e companheira de Eleuther nas tardes do Literário.

O gesto simples de garoto impúbere antecipava: ele se tornaria um grande conhecedor da alma feminina. Eleuther permaneceu anos no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, mas não era, obviamente, a vida de monge que o esperava. Continua católico praticante "por convicção, cultura e tradição".

Moço, foi para o Rio de Janei­­­ro. "Era garoto de praia, morava no Posto 4, em Copacabana." Entre um mergulho e outro, dava palpites na vitrine da butique de uma amiga. E foi justamente seu bom gosto que fez com que fosse desafiado a desenhar roupas. Bateu, então, na porta de uma escola de corte e costura. Porém, a escola de moda rafinée das irmãs austríacas Malvina e Elizabeth Cahene não matriculava homens. "Por causa do meu nome, me aceitaram com a condição de eu fazer o curso de forma clandestina." Eleuther é um vocá­­bulo grego que significa livre.

No Rio, Eleuther teve seus primeiros anos de experiência como costureiro. Aos poucos, tornou-se um modelista requisitado. No começo da década de 50, teve uma experiência capital para a carreira: foi contratado para executar e organizar os desfiles do estilista Jacques Heim, um grandes nomes da moda francesa na época.

A idade avançada da mãe foi um dos motivos que o trouxeram de volta ao Paraná, em 1963. Ins­­ta­­­lado em Curitiba, logo conquistou as primeiras clientes. Noemia Gutierrez, Zora Dalca­­nale, primeiras-damas, as Leão em peso... Era uma época em que a sociedade curitibana se fechava em ambientes restritos, das recepções nos salões do Grande Hotel Moderno e do Clube Curitibano. Nesses lugares, um homem não se atrevia a se apresentar em mangas de camisa e uma mulher merecia um vestido de Eleuther a cada festa.

Glorinhas e Jandyrinhas

Ex-cliente do Magazine Avenida, o costureiro se veste de forma discreta: nunca fez uma roupa para si próprio – "Não sou manequim". A voz é forte e levemente rouca, efeito colateral do cigarro, companheiro desde os 11 anos. O único problema de saúde é a circulação das pernas. Na mais recente viagem, em maio, a Paris, visitou a exposição de Yves Saint-Laurent, no Grand Palais, de cadeira de rodas. Confidencia que foi ótimo – não precisou ficar na fila.

Um dos grandes prazeres são as antiguidades. Eleuther dorme na cama que foi de seus pais. A figura da bisavó, Barbara Au­­­gusta de Alencar Guimarães, irmã do escritor José de Alencar, paira serena em um grande quadro no hall do ateliê. "A memória me traz estabilidade." A frase é dita com uma ponta de amargor, ao se lembrar que o casarão de sua infância foi demolido. Grande punhalada.

O costureiro continua a frequentar as festas que "veste", mas nunca se rendeu às colunas sociais. Às vezes deixa escapar um comentário mordaz sobre a transformação – para pior – da sociedade curi­­tibana. Depois que termina de narrar a cena, levanta-se e leva as mãos à cabeça, num gesto engraçado de reprovação que é sua marca.

O entusiasmo e o humor fino de Eleuther são conhecidos de suas clientes. "Uma mulher inteligente não é esnobe", costuma dizer. Gló­­ria Maria de Leão Ca­­­margo, a Glo­­­­rinha Leão, andava nervosa com seu casamento. O vestido era simples e refinado, feito a partir de uma mantilha trazida da Europa. Eleuther chegou para vestir a noiva com seu entourage numa tarde de 16 de março de 1973. "Fiz uma má criação a ele e achei que ficaria bravo. Mas ele caiu na gargalhada e me acalmou", conta Glo­­­rinha, cuja mãe, Jandyra França de Leão, era grande amiga do costureiro. Dé­­­­cadas depois, ela viu a cena se repetir com a filha e o marido entrando descontraídos na igreja para o casamento da moça. "Ele tem as palavras certas no momento certo."

O costureiro é conhecido por respeitar o gosto de suas freguesas e presentar peças à altura do sonho de cada uma. "Ele nos acolhe em momentos de alegria e beleza e nos autoriza a sermos nós mesmas", derrete-se a amiga psicanalista Sionéa Alves Car­­­doso de Souza.

Márcia Ramos de Sá Guima­­rães lembra que ficou acanhada a primeira vez que foi encomendar um vestido no ateliê de Eleuther. "Eu o achava inatingível." Mas a simplicidade e a gentileza com que foi tratada a aproximou tanto daquele senhor falante, que ela e o marido, primo do costureiro, viraram companheiros de viagem de Eleuther.

De fato, ninguém sai igual de uma conversa com este homem, cujo conhecimento vai muito além da moda e nos faz pensar sobre a nossa própria maturidade. O que a gente quer ser quando envelhecer?

No dia 22/8 O botânico Gerdt Hatschbach e sua Maria

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