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 | Ivan Amorin
| Foto: Ivan Amorin

Seu Paulo, um japonês

A trajetória de Kenji Ueta sintetiza a história de uma grande parcela da comunidade nipônica que vive no Paraná. A família do fotógrafo chegou ao Brasil em 1933, atraída pelas propagandas positivas sobre o país. "Diziam que em três meses se enchia um saco de dinheiro", lembra. Após 48 dias de viagem no navio Santos Maru, a família se estabeleceu no interior paulista. Trabalhou na lavoura, com a ideia de juntar dinheiro e voltar para casa. Mas como era preciso dividir metade dos lucros com o patrão, os japoneses acabaram ficando no Brasil. Ueta seguiu na roça até a mocidade, quando trocou de ofício, atuando em uma fábrica de tecidos e no comércio. O convite para migrar para o Paraná foi feito pelo irmão mais velho, que já havia se estabelecido em Maringá. A comunidade nipônica da cidade estava em crescimento. Como os brasileiros tinham certa dificuldade para pronunciar palavras japonesas, cada oriental que chegava recebia um novo nome. O batismo tupiniquim transformou Kenji em Paulo. Seu Paulo. Definitivamente um fotógrafo de dois povos.

O fotógrafo japonês Kenji Ueta registrou, de maneira bela e histórica, o crescimento de Maringá, no Noroeste do Paraná. Aos 83 anos, segue fazendo imagens da cidade pela qual nutre paixão. Possui lojas que poderiam se tornar museus de fotografia. E adora fazer retrato de gente. Sob suas lentes, a novíssima cidade tem memória e história.

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Os olhos miúdos de Kenji Ueta já viram muita coisa. A neve que caía sobre a província japonesa de Fukushima, onde nasceu. O movimento das águas sobre as quais se movia o navio que o trouxe para o Brasil, há 77 anos. E o desenvolvimento de uma das mais belas cidades do Paraná.

Em vias de completar 60 anos de carreira, o fotógrafo Kenji Ueta, 83, é considerado a memória documentada de Maringá. Chegou ao Noroeste paranaense apenas quatro anos depois de o município se emancipar. Foram os únicos momentos que não testemunhou.

Nas seis décadas seguintes, Ueta registrou cada passo da cidade. Viu a transformação de campos de terra vermelha em largas e arborizadas avenidas. Presenciou a curiosidade popular diante da chegada do primeiro trem à estação ferroviária. Retratou as glórias do time da cidade, que por três vezes foi campeão estadual.

As lentes de Ueta guardam íntima relação com um local, em especial: a Catedral Nossa Senhora da Glória, símbolo maior de Maringá. O fotógrafo assistiu à construção e às reformas da igreja, ponto turístico mais retratado nos cartões-postais que comercializa. "Se não tem vista da catedral, não vende", revela, em um português que ainda hoje lhe causa dificuldade.

Uma de suas imagens mostra a demolição da igreja antiga, de madeira, que ficava ao lado da catedral de concreto. Para além do momento histórico, a riqueza do retrato está no detalhe: Ueta flagrou a retirada da primeira peça da igreja, uma das telhas que cobria a construção prestes a sumir.

Outra imagem mostra um operário em pé sobre a cruz da catedral, no dia em que a peça foi instalada no topo do templo. O ano era 1972. Bom de memória, o fotógrafo ainda se lembra do local onde se posicionou para fazer registro. Recorda-se também que balançou um lenço na direção do corajoso trabalhador, para sinalizar que o clique estava feito e que o operário podia descer da cruz, conforme o código que haviam combinado.

Revelar os bastidores da produção de cada foto, aliás, é algo que enche Ueta de prazer. E que ele faz tão logo toma uma imagem em mãos. Para cada registro há uma história. Como o acervo que possui é incalculável – o fotógrafo não se arrisca quantificar o volume de imagens que já produziu –, ele guarda consigo infindáveis passagens do cotidiano da cidade.

Fotógrafo de gente

A obra de Ueta também é rica em traços humanos. O fotógrafo gosta de gente. O patrimônio financeiro que formou nos quase 60 anos de profissão foi sendo construído a cada nascimento, baile de debutantes e casamento que acontecia na região. Seu estúdio era um dos mais procurados por quem buscava eternizar mo­­­mentos de alegria.

Foi o que fizeram os apaixonados Leonildo e Laurinda, em 1958, quando se casaram. Àquela altura, havia sete anos que Ueta se mudara do interior paulista para Maringá e dera início à carreira de fotógrafo. Em 2008, o casal completou bodas de ouro. E fez questão que as imagens da celebração fossem feitas pelo mesmo homem que, cinco décadas atrás, havia retratado a união.

Ueta adorou a ideia. Tem se dedicado a vasculhar as inúmeras caixas e gavetas nas quais guarda o próprio acervo em busca de histórias semelhantes à de Leonildo e Laurinda. Quer fazer fotos atuais dos noivos que viu casar. Exige que a pose original seja repetida. Chama o processo de "o antes e o depois". O resultado deve integrar uma exposição que Ueta está organizando para o ano que vem, quando completará 60 anos de profissão e de residência em Maringá.

Nesse período, a cidade soube lhe retribuir. O fotógrafo calcula que, entre prêmios, comendas e afins, tenha sido agraciado quase 20 vezes. A honraria mais recente veio da Federação do Comércio do Paraná (Fecomércio), que, neste ano, o incluiu na lista dos 54 empresários do estado presenteados com o troféu "Guerreiro do Comércio".

O título soa justo: o legado de Ueta para o desenvolvimento do mercado fotográfico paranaense é significativo. Com uma exatidão que impressiona, ele diz ter contribuído na formação de 148 profissionais. Os pupilos hoje fazem cliques em todo o estado, inclusive em Curitiba, onde, segundo ele, atuam três dos aprendizes.

O momento mais marcante da carreira aconteceu em 1978, durante as celebrações dos 70 anos de imigração japonesa no Brasil. O então príncipe do Japão, Akihito, visitou Maringá, acompanhado da princesa Michiko. Ueta os conheceu e os fotografou. Guarda com carinho, em álbum, todas as fotos que fez.

A firma de Ueta

Cercado por funcionários jovens, Ueta diz ser indispensável para o sucesso das lojas, cuja administração cabe a um dos dois filhos, fruto do casamento de 63 anos com Yoshiko. "A firma precisa muito de mim, porque tem muita gente nova. E é preciso de mim (sic) para explicar as coisas antigas." Ele afina o português e arremata. "Gosto de contar o que aconteceu para mostrar o valor do passado."

Antes de a tecnologia digital revolucionar o mercado fotográfico, Ueta chegou a ter, em Maringá em diversas cidades da região, 22 lojas, com quase 200 funcionários. Hoje, emprega 15 pessoas nos únicos três estabelecimentos que conseguiu manter abertos – dois em Maringá e um em Paranavaí.

Boa parte do que a indústria fotográfica produziu de melhor no século passado está guardada nas lojas de Kenji Ueta. Ele armazena mais de 200 peças, entre câmeras, lentes, bolsas e acessórios que saíram de linha. Embora cortejado por colecionadores, o fotógrafo faz questão de guardar alguns dos equipamentos mais antigos.

Manuseia com cuidado uma máquina alemã Linhof, da década de 1940, que garante ter sido a primeira câmera portátil de Maringá. Zeloso, guarda em uma sala o primeiro equipamento que teve, feito de madeira. É a mais clássica das máquinas: aquela que exige o uso de um pano escuro sobre o fotógrafo para assegurar o sucesso da captação da imagem.

Foi, à época, um investimento e tanto, possível de ser pago graças à união de Kenji com os dois irmãos – Yukio e Tetsuaki – na sociedade que garantiu a entrada da família no ramo. O pioneiro foi Yukio, o mais velho dos três, que aprendeu o ofício e o ensinou aos irmãos.

Os equipamentos fazem Ueta se lembrar do período de ouro do negócio, entre as décadas de 1960 e 1970, quando revelava até 300 filmes por dia. Casamentos, chegou a fazer cinco em um único sábado. Tamanha demanda se desfez com o surgimento de novos profissionais e a popularização das câmeras digitais.

Ueta teve de aprender a gostar delas. Modernizou todo o negócio, com a aquisição dos equipamentos necessários para atender as novas demandas da clientela. Foi além. Comprou para si mesmo uma máquina digital, que carrega na cintura, pronta para registrar um bom flagrante – e com 12 megapixels de resolução.

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