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A terra da gasosa

Quando chegou a Curitiba, em 2001, Wilson diz ter estranhado basicamente três coisas: o sotaque, o frio e a comida. Mas tinha mais. Uma das coisas que ele não entendia era o fato de as pessoas tomarem refrigerante todos os dias. "Em Sumbe, a gente só tomava gasosa no Natal, quando vinha a cesta básica do governo", diz. Aqui, a gasosa virou símbolo da fartura.

A vida no Bumba, o bairro operário da cidade de WQZilson, não era fácil. Quando Wilson saiu, a casa ainda era de pau a pique, com teto de folhas. "Eu saí de lá na época em que os meus pais tinham conseguido trocar a grama do teto por placas de alumínio. Foi a maior evolução que a gente teve até então".

Hoje, oito anos depois do fim da guerra, as coisas começam a melhorar em Angola.

Mas nem tanto. "Acho que gasosa lá ainda não deve ser comum", diz.

Wilson Madeira - Nascido em 1986, em Gabela, Angola, veio para o Brasil em 2001. Mora em Curitiba, no Instituto Paranaense dos Cegos, junto com dez outras vítimas da guerra civil e da pobreza de seu país. Depois de aprender a ler e escrever em braile, Wilson terminou o ensino médio e agora cursa Psicologia. Junto com seus colegas do instituto, formou um coral. Ele é o líder dos Meninos Cantores de Angola.

Quando a guerra civil angolana tirou a visão de Wilson, ele era novo demais para saber o que estava acontecendo com ele e com seu país. Aos 4 anos, não tinha nem como saber que seu vizinho estava mentindo quando disse que tinha um brinquedo para dar para ele. Como iria adivinhar que o brinquedo era uma granada? Ele não sabia que seu pai era do serviço secreto do Exército; muito menos que um vizinho podia querer matar pessoas por ter descoberto isso. Wilson e os três primos aceitaram a granada, brincaram com ela. Até que ela explodiu. Os primos morreram. Wilson ficou cego para sempre.

Mesmo mais tarde, Wilson ainda não conseguia entender a guerra. Aos 8 anos, a guerra chegou a Sumbe, a cidade em que a família havia se refugiado depois de ser descoberta em Gabela. "Eu até achei divertido quando aconteceu o ataque", diz ele, lembrando o que aconteceu em 1992. A família toda se escondeu no meio de um matagal. Durante os três dias do ataque, comeu o que os adultos conseguiram arranjar. Brincou com os primos distantes que vinham de cidades menores – onde os ataques da facção rebelde, a Unita, eram mais frequentes.

Só quando já vivia há algum tempo no Brasil Wilson foi saber com mais detalhes o que havia acontecido em seu país. As três décadas de guerra civil que se seguiram à independência de Portugal foram explicadas por outros angolanos que vieram para cá fugindo da tragédia. Wilson finalmente teve acesso a computadores com programas de leitura para cegos e pôde acessar sites com notícias de Angola.

A partir daí, começou a escolher seu caminho. Passou a eleger as batalhas que queria lutar. A mais importante delas, até agora, foi a batalha para permanecer no Brasil até terminar os estudos. A Fundação José Eduardo dos Santos, mantida pelo presidente de Angola, havia mandado 18 cegos para cá. A ideia era que eles aprendessem o braile, frequentassem a escola e voltassem para disseminar o conhecimento. Mas eles, que chegaram ao Brasil em 2001, ainda não pensam em deixar o país. Não enquanto não tiverem cumprido aquilo a que se propuseram.

"No ano passado, eu e mais cinco terminamos o ensino médio. Cortaram nossa bolsa e queriam que voltássemos. Mas nós queremos primeiro fazer a faculdade", diz. O fato de Wilson e os seus dez companheiros que moram em Curitiba terem ficado conhecidos pelo coral que montaram – os Meninos Canto­res de Angola – ajudou a criar uma mobilização para que eles pudessem permanecer. No fim, o governo do estado topou dar uma bolsa a cada um, desde que continuassem estudando.

A batalha que os 11 angolanos de Curitiba escolheram, Wilson à frente, é a de só voltar ao país, que desde 2002 vive oficialmente em paz, quando eles forem capazes de fazer alguma diferença real por lá. Por isso cada um escolheu cursar uma área direta ou indiretamente ligada à reconstrução da democracia angolana. Entre os 11, há alunos de Direito, Pedagogia e Jornalismo. Wilson escolheu Psicologia. Diz que quer entender a cabeça de seu povo.

Família

Nos nove anos de Brasil, a maioria dos meninos e meninas perdeu o contato com a família. Wilson, que morava no Bumba, uma favela de Sumbe, não tinha como mandar cartas para ninguém: as ruas não têm nomes nem números lá. E telefone, quando ele saiu, não havia.

Em 2005, os Meninos Can­­tores foram convidados para voltar ao país. Eram poucos dias, só para participar da festa de aniversário de Angola. Em Luanda, a capital, Wilson começou a perguntar se alguém conhecia sua cidade. Coincidência, achou uma colega de funcionalismo público de sua mãe. Conseguiu um número de telefone e ligou.

"Minha mãe começou a chorar. Também chorei", diz. O que Wilson não sabia é que sua mãe chorava por dois motivos: pela saudade do filho e pela morte do marido. O corpo do pai do menino estava sendo velado naquele momento. "Ela só me contou depois. Não queria que eu desistisse de voltar para o Brasil. Sabia que lá um cego não teria condições de estudar", conta.

Foi para cumprir essa missão que Wilson lutou com seus colegas para permanecer no Brasil. Passou no vestibular e continua estudando. Enquanto isso, já escolheu quais serão suas próximas batalhas. Ambição é o que não falta. Aos 23 anos, Wilson tem certeza do que quer. "Vamos voltar e formar um partido. E vou me candidatar a presidente", diz.

Por aqui, Wilson já e uma espécie de líder. Por ser o mais velho dos 11 angolanos que moram no Instituto Paranaense de Cegos (sete outros foram enviados a Florianópolis), Wilson é respeitado pelos de­mais como um irmão mais velho. "Sempre ouvimos os mais velhos. É uma tradição africana", diz Francisco, 22, que hoje estuda Pedagogia. "Éramos muito novos quando chegamos, ele sempre nos ajudou em tudo", diz Juliana, 20.

Como presidente, Wilson diz que sua principal tarefa seria reconstruir o país. E evitar que houvesse novas guerras, novas vítimas. Essa é a batalha que ele quer lutar.

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