As decisões controversas no Judiciário ao julgar supostos crimes de ofensa à honra colocam em risco a liberdade de expressão e têm como consequência a autocensura do cidadão comum, segundo juristas. Cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgar de acordo com a lei e harmonizar as decisões de todas as instâncias. No entanto, nos últimos anos, os tribunais superiores têm sido os primeiros a desestabilizar a aplicação da lei, postura que tem sido replicada em instâncias inferiores com decisões de duplo padrão e desproporcionais.
Luciano Hang, dono das Lojas Havan, por exemplo, foi condenado à prisão por injúria e difamação, recentemente. Hang publicou um vídeo em suas redes sociais no qual chama o arquiteto Humberto Hickel de “esquerdopata”, “da turma do ele não”, “adora o MST” e “vá pra Cuba que o pariu”. No caso de Hang, a prisão foi convertida em serviços comunitários.
Já o Ministério Público Federal pediu o arquivamento de um processo semelhante contra Felipe Neto. O influencer chamou Arthur Lira (PP-AL) de “excrementíssimo” durante uma audiência pública na Câmara dos Deputados. Em outro caso, um juiz de Santa Catarina extinguiu ação ajuizada pela deputada Júlia Zanatta (PL-SC) após ter sido xingada de “Barbie fascista”. Por outro lado, a Justiça do Rio de Janeiro condenou José de Abreu a indenizar em R$ 35 mil um ator, por ter chamado outro ator de “fascista”, “sem caráter” e “esclerosado” nas redes sociais.
É comum encontrar divergências em decisões relacionadas a crimes contra a honra no Judiciário brasileiro, devido a diversos fatores. O primeiro é que o direito à liberdade de expressão é amplo. O que leva ao segundo fator relevante: as decisões ficam mais dependentes da interpretação do juiz sobre os fatos. Essa dificuldade, desde sempre presente no sistema judiciário, ficou ainda mais evidente quando os tribunais superiores passaram também a ter decisões divergentes, tornando a jurisprudência mais caótica.
Os juristas afirmam ainda que o duplo padrão pode se agravar porque os juízes, como qualquer cidadão, são influenciados pelas narrativas construídas ou por alimentar simpatias ou antipatias por figuras públicas. Apesar das opiniões pessoais, os magistrados, obviamente, deveriam seguir a ética profissional em suas decisões, mas isso nem sempre acontece.
Inquérito das fake news centralizou questões sobre liberdade de expressão no STF
“Quem sempre foi responsável por pacificar essa jurisprudência, que é o Supremo Tribunal Federal, tem sido o primeiro a desestabilizá-la”, aponta André Marsigilia, advogado constitucionalista e especialista em liberdade de expressão. O jurista relembra que, a partir de 2019, com o inquérito das fake news, o STF centralizou questões sobre discurso. “Desde que o STF passou a entender tudo relacionado à liberdade de expressão de forma muito autoritária, essa jurisprudência que já não era boa ficou absurdamente caótica”, acrescenta.
Allan dos Santos, Monark e Bolsonaro são algumas das figuras públicas que responderam diretamente ao STF por opiniões. O ex-presidente está sendo investigado por calúnia, injúria e difamação – e outros nove crimes – por criticar o funcionamento de urnas eletrônicas em eleições, por exemplo.
Em abril deste ano, o Tribunal de Justiça de Pernambuco ordenou a prisão de um jornalista independente com citações de uma decisão de Alexandre de Moraes de 2022. A ordem de prisão de Ricardo Antunes se deu por descumprimento de medidas cautelares em um processo por injúria e difamação.
Na decisão, a juíza Andréa Calado da Cruz, da 11ª Vara Criminal de Recife (PE), replica trecho de decisão de Moraes que diz que “a liberdade de expressão é consagrada constitucionalmente e balizada pelo binômio LIBERDADE E RESPONSABILIDADE, ou seja, o exercício desse direito não pode ser utilizado como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas. Não se confunde liberdade de expressão com impunidade para agressão”. Antunes estava no exterior e não chegou a ser preso.
“Jurisprudência caótica sobre liberdade de expressão leva à autocensura”, afirma jurista
“A solução estaria nos tribunais superiores – STF, STJ, TSE – uniformizarem esses entendimentos. Mas, infelizmente, o que estamos vendo nos tribunais superiores é uma certa discrepância de entendimento conforme os casos, e isso não é bom”, avalia o advogado e professor Ricardo Peake Braga.
“A liberdade de expressão, quando entra no debate político, tem que ser sempre interpretada de modo garantista, no sentido de permitir o debate. Se for aplicada de maneira muito rigorosa, o debate político vai ficar prejudicado”, ressalta Braga.
No caso de Luciano Hang, a juíza de primeira instância avaliou que a ação era improcedente, entendendo que o discurso do empresário faz parte do debate público. Na decisão, a magistrada também acatou argumentos do parecer do Ministério Público, que considerou que as declarações de Hang foram uma resposta a críticas e ofensas do arquiteto.
Na segunda instância, dois de três desembargadores de uma das turmas do TJ-RS consideraram que as declarações “não se tratavam apenas de mera divergência de ideias, sendo desonrosas e capazes de prejudicar a imagem pública e profissional do arquiteto". Por dois a um, a turma decidiu que Hang cumprisse 1 ano e 4 meses de reclusão e 4 meses de detenção, além do pagamento de multa no valor de R$ 207.998,00. A pena privativa de liberdade acabou sendo substituída por serviços à comunidade.
Para Marsiglia, as decisões de primeira e segunda instâncias são destoantes porque estariam em extremos opostos. “O que o Judiciário ensina com esse caso do Hang? Ensina que ‘na dúvida, fique quieto’. Porque o cidadão comum não vai saber se o juiz vai entender que existe um direito ou se ele pode ser preso. Então, na dúvida, deixe de falar. Essa é a pior consequência que decisões tão extremadas trazem”, reitera.
Maior dependência da interpretação de magistrados coopera para sentenças controversas
Por depender ainda mais de interpretação individual, opiniões pessoais de juízes podem, sim, afetar as sentenças de processos sobre liberdade de expressão, de acordo com Marsiglia. “O juiz também é um cidadão como todos nós e, obviamente, é impactado pelas construções de narrativas feitas na sociedade”, considera o jurista.
Ainda segundo Marsiglia, atualmente, há uma narrativa que considera o discurso de direita como extremado. Essa visão também impacta os magistrados, levando o Judiciário a proferir mais decisões contrárias a esse espectro político.
“‘Extrema-direita’ virou um conceito praticamente vulgarizado. Todo discurso de direita pode ser chamado de extremo e, portanto, de radical e de criminoso. Então, existe em curso uma espécie de criminalização do discurso da direita feito tanto pela opinião pública quanto pelo atual governo”, analisa.
“Se a discrepância de interpretações já é ruim em si, ela é ainda pior quando há a percepção de que as decisões variam conforme o espectro político. Isso cria a ideia de que haveria preferências políticas na hora de tomar decisões, o que vai contra a noção de igualdade perante a lei e o próprio Estado de Direito”, reforça Braga.
Personagens públicos devem estar mais suscetíveis a críticas
O professor também aponta que figuras públicas devem estar mais suscetíveis a aceitar críticas e certos tipos de acusações, quando comparadas a pessoas comuns. “O próprio Alexandre de Moraes foi muito claro, durante sua sabatina no Senado, ao afirmar que a pessoa pública, pela função e por estar mais exposta, deve estar mais sujeita a críticas que um particular”, relembra.
Em relação a processos judiciais de personagens públicos ou determinados políticos, Marsiglia destaca que isso também pode impactar e influenciar os magistrados. “É um mito que o juiz não olhe a capa; isso não é uma realidade. As pessoas têm suas impressões sobre os outros e existe um pré-julgamento do Judiciário com essas pessoas. O que precisamos ver é se o juiz é eticamente isento e vai fazer o seu trabalho independente de suas preferências”, conclui.
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