A cada confronto entre policiais e criminosos no Brasil que resulte em vítimas feridas em decorrência das trocas de tiros ou em um grande número de mortos, volta à tona o debate sobre a desmilitarização das polícias. O assunto é controverso, uma vez que diferentes segmentos entendem o conceito de forma divergente. Enquanto alguns defendem que a desmilitarização significa eliminar aspectos como hierarquia, disciplina e símbolos militares nas corporações, outros entendem o termo como a redução do uso de força e há ainda segmentos mais extremistas que pedem o fim das polícias sob a justificativa de acabar com a violência de eventuais excessos e abusos.
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A proposta de desmilitarização também surge com frequência no debate parlamentar, capitaneada sobretudo por partidos políticos de esquerda. Em 2013, o ex-senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51, em que propunha a desmilitarização policial – a proposta perdeu força e atualmente está arquivada. Em 2015, o Partido dos Trabalhadores (PT) publicou um caderno de teses intitulado “Um partido para tempos de guerra”, no qual cita a desmilitarização das polícias militares (PM) como pauta prioritária a ser buscada pela sigla.
Durante a campanha presidencial de 2018, dois candidatos – Guilherme Boulos (PSOL) e Vera Lúcia (PSTU) - citaram a desmilitarização policial em seus planos de governo como proposta para a segurança pública. Mais recentemente, após a morte de George Floyd e as consequentes manifestações nos Estados Unidos devido aos excessos por parte de forças policiais, o assunto voltou a ganhar força no Brasil.
Anos atrás, o discurso era pela desmilitarização das PMs, mas atualmente o pedido se direciona às polícias em geral, sob a justificativa de que a Polícia Civil também emprega métodos militares que precisariam ser revistos. O pano de fundo mais recente usado para ilustrar essa demanda foi a operação da Polícia Civil realizada no início de maio na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeira, que resultou na morte de 28 pessoas, entre elas um agente da Delegacia de Combate às Drogas.
Retirada de aspectos militares da polícia é prejudicial à segurança pública, apontam especialistas
De acordo com fontes ouvidas pela Gazeta do Povo, a retirada de conceitos militares, considerados fundamentais para o bom funcionamento de corporações policiais, é inadequado ao contexto de segurança pública do país.
“As polícias de todo o mundo ou são militares ou usam a estética e a ética militar, porque isso traz vantagens como disciplina, hierarquia, civismo e senso de dever acima da média, além de melhorar o sistema de controle interno das corporações”, diz Olavo Mendonça, especialista em segurança pública e major da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). “Quando há um poder muito grande, como o de prender pessoas e cercear direitos, é preciso haver controle eficaz. E o militarismo contribui para esse controle, pois aí tem o regulamento militar, que é extremamente rigoroso, e o Código Penal Militar, que é mais rigoroso ainda”, reforça.
Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), afirma que uma proposta de desmilitarização que permeie a retirada de aspectos hierárquicos geraria dificuldades de controle nas próprias corporações. “Retirar hierarquia e disciplina deixaria a polícia fora do controle. Essa desmilitarização viraria um caos”, declara.
Para Marlon Jorge Teza, presidente da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme) e coronel da Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC), propostas pela desmilitarização policial têm cada vez mais perdido força a partir do momento em que passaram a ser desconstruídos mitos como o de só existir Polícia Militar no Brasil ou de que os problemas da segurança pública estão no aspecto militar das forças policiais.
“Há muita confusão nesse argumento de que a polícia, por ser militar, é para guerra. Há no mundo todo polícias militares. Geralmente tem uma militar e uma civil”, diz o presidente da Feneme.
Conforme explica Teza, existem dois tipos de organizações policiais no mundo: o anglo-saxão, do qual descende a polícia norte-americana, em que há investidura civil militarizada, e o modelo gendarme, que possui investidura militar. No Brasil, aplica-se o segundo modelo por herança da colonização portuguesa.
“A PM não foi inventada na Ditadura, como alguns dizem. O modelo militar da polícia teve início em 1808 com a vinda da família real para o Brasil. A partir da década de 1930, após a publicação de um decreto determinando que quem faria a segurança das províncias seriam os presidentes delas, esses começaram a criar suas polícias e a partir daí foram formadas as corporações militares”, diz o coronel da PMSC.
Além de Portugal, modelos semelhantes ao brasileiro existem em países como Itália, Espanha, França, Holanda, Argentina e Chile. “São mais de 70 polícias militares no mundo. Nesses países foi feita uma opção por haver corporações militares, embora também haja polícias civis”, diz Teza.
No Brasil, no âmbito estadual, existem as polícias civis – que cuidam da investigação criminal e não possuem aspectos como hierarquia, disciplina e fardamento militar – e as polícias militares, às quais cabe o policiamento ostensivo nas ruas e a preservação da ordem pública. De acordo com a Constituição Federal, as PMs são forças auxiliares do Exército. Isso significa que as corporações assumem o papel de uma “guarda nacional” quando há graves perturbações da ordem.
Práticas “excessivamente militares” em confrontos
Para o presidente do FBSP, a única proposta de desmilitarização que faria sentido para a realidade brasileira seria desvincular, na Constituição Federal, as polícias militares do Exército, e buscar uma doutrina policial diferente das Forças Armadas. Na prática, segundo Lima, isso se traduziria em evitar doutrinas que vinculem o policiamento quase que exclusivamente ao confronto.
“Ao pensar em uma doutrina de guerra, o objetivo é neutralizar o inimigo. Mas nesse aspecto específico da desmilitarização também entra a prevenção, o policiamento comunitário, o pensamento de novos padrões de policiamento que tenham a ver com aumentar a confiança da sociedade na polícia”, argumenta. “Se desmilitarizar for em direção de aproximar a PM da sociedade, aí sim pode-se pensar que é uma agenda positiva”.
Para o coronel Teza, há um desafio não apenas no Brasil, mas em diversos países, de reduzir “práticas excessivamente militarizadas” das corporações policiais. Para ele, isso não tem relação com a investidura militar, e sim com uma cultura que vincule o policial a um guerreiro em combate.
“Hoje há um problema nas PMs que é aquele ethos do “ser guerreiro” muito latente. E esse ser guerreiro é próprio de uma guerra. A desmilitarização que pode haver é desmilitarizar algumas práticas e procedimentos”, aponta o oficial da PMSC. Para ele, a busca pela prisão de um criminoso a qualquer custo, ainda que possa resultar em danos colaterais - colocando pessoas inocentes em risco -, é uma das práticas que caberia revisão. “É evidente que vai haver confrontos em algumas ocasiões, mas eles não podem ser programados. O que deve ser feito é tentar ao máximo retirar condutas, para que se amenize ao máximo o efeito morte e violência”, diz.
Lima, do FBSP, aponta que em vez de buscar mudanças estéticas ou hierárquicas nas corporações, aspectos como o aumento de mecanismos de controle da atividade policial representariam evoluções no sentido de evitar excessos e confrontos. “O que existe é que essa cultura organizacional é repassada informalmente para os policiais mais novos como lei de sobrevivência. Para mudar isso não é simplesmente colocar conteúdos de direitos humanos nos currículos, é preciso cobrar protocolos que tenham a ver com direitos humanos”, afirma o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para Mendonça, é equivocado relacionar o serviço policial a excessos cometidos por policiais e usar desses episódios ocasionais para inviabilizar a atuação das forças de segurança. “Em todas as regiões do Brasil já é comum casos de quadrilhas que fecham cidades inteiras, explodem bancos, metralham quartéis, sequestram e torturam pessoas. Num país que já teve 65 mil homicídios por ano e que possui o maior número de policiais assassinados em todo o mundo, dizer que o policial tem que ser formado a partir de um comportamento excessivamente pacífico é algo desconectado da realidade”, cita o major da PMDF.
O oficial explica que o uso de força é um tema sempre delicado, uma vez que a força progressiva é um recurso presente no dia a dia dos membros das corporações. “Você não vai deter um criminoso, algemá-lo e conduzi-lo preso sem usar a força. Existem casos em que o policial pede para a pessoa entrar na viatura e pronto. Mas prender um criminoso, muitas vezes armado e contra a sua vontade, não é algo simples”, ressalta.
Reflexos das manifestações norte-americanas contra militarização das polícias
Apesar de as polícias norte-americanas serem majoritariamente civis, desde o ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, há em curso nos Estados Unidos um processo de militarização das forças policiais sob o ponto de vista técnico e de equipamento – com isso, agentes que até então utilizavam armamento e equipamentos básicos passaram a utilizar fuzis, capacetes e veículos blindados. Como essa realidade não era habitual no país, esse modelo de militarização tem sido alvo de críticas por parte da população do país.
“A guerra ao terrorismo e o fortalecimento do crime organizado levaram o país a um colapso, e as polícias passaram a ter um processo amplo de maior militarização. As pessoas não estavam acostumadas com isso e passou a haver questionamentos”, explica Mendonça. “Não tem nada a ver com a militarização do ponto de vista de amor à pátria, civismo, hierarquia e disciplina, e sim com o fortalecimento das polícias”, diz.
Após o assassinato de George Floyd, entidades de direitos humanos e movimentos extremistas como o Black Lives Matter deram início a reivindicações mais incisivas para a redução dessa forma de policiamento. Segundo Lima, essas manifestações têm se espalhado por outros países, incluindo o Brasil. “Têm situações em que vai haver confronto, ninguém está falando em a polícia se omitir. Mas não necessariamente enfrentar o crime indo de peito aberto para matar ou morrer. O foco é em ser mais eficiente – seja tirando o dinheiro do criminoso, prendendo quando ele menos espera, desmantelando quadrilhas –, que é mais eficiente do que trocar tiros”, diz o presidente do FBSP.
O major da PMDF, por outro lado, argumenta que parte dessas reivindicações de movimentos sociais tem como objetivo burocratizar e problematizar de forma desproporcional o serviço policial a ponto de deixá-lo inviável. Em operações relacionadas ao crime organizado, é comum o amplo uso de recursos de inteligência, desde mapeamento dos pontos de droga, interceptação das comunicações entre integrantes das facções, geolocalização e videomonitoramento dos indivíduos a partir de recursos tecnológicos, além dos meios tradicionais de observação e informação. Mas, segundo o oficial, a partir daí, em alguns casos, é inevitável que haja o confronto.
“Frequentemente quando se fala que é preciso usar a inteligência para resolver crimes, fala-se com o intuito de desmoralizar a polícia, como se não houvesse o uso de estratégia e inteligência no combate ao crime”, critica. “Não tem como elaborar um relatório de inteligência e simplesmente passar para o criminoso para ele se entregar. Em algumas ocasiões inevitavelmente haverá o confronto”, ressalta Mendonça.
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