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| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Em vinte anos, a população urbana saltou de 45% para 54%, no mundo todo. Destas 3,9 bilhões de pessoas, quase um quarto vive em favelas nos países em desenvolvimento. Garantir moradia de qualidade a estas 881 milhões de pessoas, hoje vulneráveis, e às 600 milhões que estão por vir, é o ponto chave na proposta que a Organização das Nações Unidas (ONU) elaborou para sua nova “Agenda Urbana”. O recém-lançado “Relatório das cidades” é o ponto inicial para o documento que será assinado no Habitat III, conferência do programa da organização para assentamentos humanos da ONU, que ocorre em outubro, no Peru.

A habitação já foi eleita prioridade na conferência anterior do Habitat, em 1996. Sem sucesso. De um lado, os governos “abriram mão” de fornecer casas à população de baixa renda. De outro, de criar incentivos ao mercado e marcos regulatórios que poderiam “permitir a outros atores oferecerem moradias adequadas a preços justos”, avalia o relatório.

“Foi o grande tema do Habitat II, mas as diretrizes da agenda eram muito gerais e globais, e tinham grande dificuldade em serem traduzidas nos contextos locais”, explica Circe Monteiro, do grupo de pesquisa Inciti, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A ONU cita a conjuntura mundial – o Banco Mundial, por exemplo, deixou de priorizar habitações populares para focar em financiamento imobiliário para a classe média – e a falta de interesse dos países em incorporar políticas de moradia como principais causas do problema.

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A estratégia de passar para o mercado a responsabilidade de construir casas para a baixa renda “falhou em não ofertar casas adequadas e acessíveis”, avalia o documento. O coordenador do MBA em Gestão de Negócios de Incorporação e Construção Imobiliária da Isae/FGV, Pedro de Seixas Correa explica que este é um desafio que o mercado, sozinho, não tem como enfrentar. E exemplifica com dois gargalos da realidade brasileira.

Um deles é a a escassez de terrenos. A falta de áreas urbanizadas encarece o preço dos locais existentes. Uma aposta são os planos diretores municipais, que podem incentivar o crescimento em uma determinada área, sem que o governo precise arcar com todo o custo em infraestrutura. Outro problema é o alto custo do crédito imobiliário, que deveria cair a taxas inferiores a 6%, acredita Correa. Mas isso depende de uma série de fatores macroeconômicos. “Não pode ser via decreto”.

Parte da falta de moradia para a baixa renda é o chamado “déficit qualitativo”, que na América Latina e no Caribe representa 61% das pessoas em moradias vulneráveis. São edificações com número de quartos insuficiente, feitas com material que não resiste às intempéries ou sem banheiro dentro de casa, por exemplo. O termo vale também para vizinhanças que não tem estrutura básica, como ligação com as redes de água e esgoto. Uma visão mais “holística” do desenvolvimento habitacional é necessária, diz a proposta para a nova agenda urbana.

Outros setores defendem ir além, e incorporar a noção de “direito à cidade” ao relatório. Maria Eugênia Trombini, que representa a ONG Terra de Direitos no Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), explica que o direito é uma diretriz que agrega temas como a mobilidade, a urbanização, a moradia, e a ocupação do espaço público no guarda-chuva do direito humano.

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Francisco Comaru, que integrou a equipe que assessorou o Ministério das Cidades na construção do documento que o Brasil apresentou para a construção do relatório, explica que há uma espécie de consenso em torno do “direito à cidade”, no Brasil. “Mas o pessoal da embaixada alertou a gente que os outros países não devem aceitar tão facilmente”. Possível caso dos Estados Unidos, que foi resistente à aprovação do “direito à moradia”, em 1996, em função das consequências legais que a palavra “direito” poderia ter em sua constituição federal.

Embora abstrato, o termo pode ter implicações práticas de forçar os países a solucionarem seus problemas urbanos mais urgentes, explica Comaru. No Brasil, falta a solução de tarefas básicas, como água, esgoto e banheiro; a violência urbana é outro tema urgente. Em países da África a violência contra a mulher pesa, e a instalação de iluminação pública noturna poderia aumentar a segurança. Na Índia, há um grande número de trabalhadores ambulantes que moram em periferias a horas de distância, não têm estrutura de moradia ou carteira assinada. Na Europa, a construção de cidades resilientes a desastres naturais e o direito a ocupar o espaço público têm maior importância.

São temas que traduzem o desafio do relatório e da conferência: equilibrar a nova e a velha agenda. Temas que já eram graves em 1996, como moradia e desigualdade econômica, ficaram ainda mais graves. Mas surgem novas demandas, como a necessidade de um modelo de desenvolvimento ambientalmente sustentável e a incorporação de novas tecnologias de comunicação.

A nova agenda, para a ONU, deve “olhar para a frente e focar na solução de problemas, com meios claros de implementação”. Com uma visão global de cidade, a agenda deve criar “cidades e assentamentos humanos ambientalmente sustentáveis, resilientes, socialmente inclusivos, seguros, sem violência e economicamente produtivos”.

As estratégias para a moradia mundo afora

No “Relatório das cidades”, documento preparatório para o Habitat III, a Organização das Nações Unidas traz uma série de propostas para guiar os países na adoção de políticas que visem a eliminação do déficit habitacional, quantitativo e qualitativo.

Melhorar cadeias de fornecimento para aumentar o estoque de casas em compassa com a necessidade e demanda

Reconhecer que trabalhadores autônomos e construtoras de pequena escala são os principais provadores de moradia para a maioria das pessoas

Setor informal representa 60% a 90% do fornecimento de casas em países em desenvolvimentos.

Preços realistas

É fundamental analisar a viabilidade financeira de cada região, em relação à média do custo de moradia

Encorajar reformas domésticas por meio de um marco regulatório de financiamento

Encorajar reformas mais eficientes por meio de pequenos financiamentos (US$ 500 a US$ 5.000) pagos entre um e três anos

Grupos vulneráveis

Focar políticas públicas em grupos vulneráveis (mulheres, migrantes, deficientes, HIV, idosos, jovens)

Despejos forçados criam e reforçam a vulnerabilidade, e não devem continuar.

Alternativas apropriadas para moradias de uma pessoa só

Programas de micro financiamentos para casas com vários ocupantes ou para reformar casas já existentes podem ser uma forma mais efetiva de dar acomodações a pessoas solteiras

Posse de propriedade

Títulos conjuntos, como as terras comunitárias que existem nos EUA e no Quênia, podem gerar uma distribuição de terra mais imparcial do que os títulos individuais usados na maioria dos países.

Aluguel com condições justas para locatários e proprietários

A oferta de casas alugadas deve ser um foco central na criação de moradias

É uma forma eficiente e viável financeiramente na América Latina e no Caribe, para sanar o déficit quantitativo e qualitativo que afeta 40% dos moradores da região

Governo deve regular relação entre proprietários e inquilinos, de forma que permita segurança de moradia para o locatário e o despejo de inquilinos inadimplentes para o proprietário

Promover setor informal

Encorajar construtores informais e torná-los mais eficientes por meio de treinamento, maior acesso a materiais, informações de mercado.

Treinar aprendizes em parcerias entre construtores informais e instituições de treinamento

Fornecimento de moradia pela comunidade

Encorajar financiamento coletivo para comunidade construir casas e serviços

Instalação de infraestrutura como acesso a água e saneamento deve ser liderada, sempre que possível, pela comunidade. A própria população deve se responsabilidade pela administração, em nível local. Uso de tecnologias apropriadas deve ser encorajado.

Governos locais, responsáveis pelo planejamento e implementação de políticas de habitação, deve receber receba financiamento e recursos de pessoal para dar conta da logística

Pessoas em situação de rua

Pessoas em situação de rua devem ser incluídas como um grupo prioritário na Estratégia de Moradia.

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