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A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, no Lardo da Ordem, em Curitiba. Ela esteve na capital paranaense para o lançamento de seu livro Guerra de Lugares e para discutir a “financeirização” das cidades. | Antônio More/Gazeta do Povo
A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, no Lardo da Ordem, em Curitiba. Ela esteve na capital paranaense para o lançamento de seu livro Guerra de Lugares e para discutir a “financeirização” das cidades.| Foto: Antônio More/Gazeta do Povo

Em 2008, quando a brasileira Raquel Rolnik assumiu a relatoria do Direito à Moradia Adequada das Nações Unidos (ONU), explodia nos Estados Unidos a chamada “crise imobiliária”. Em uma ponta estava a derrocada de executivos de bancos e instituições financeiras. Na outra, o colapso das famílias que perdiam suas casas. Nos 12 meses anteriores, 3,7 milhões de mutuários haviam iniciado o foreclosure, o processo de execução de suas hipotecas – número que cresceu em 35% até abril de 2009. No centro da crise estavam os chamados empréstimos subprime – hipotecas de alto risco individual, mas segura e rentável para os investidores. Esse foi um caso emblemático do que Raquel chama de “financeirização da moradia”. Em seu novo livro, Guerra dos Lugares, a arquiteta defende a tese de que, no mundo todo, a moradia passou a ser vista como ativo financeiro. E não mais como direito humano.

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A hipótese foi formulada ao longo dos seis anos na Relatoria da ONU, período em que a arquiteta – que fez parte da equipe que fundou o Ministério das Cidades, no Brasil – rodou o mundo verificando as condições de moradia de cada país. E viu, em cada lugar, suas especificidades. No Reino Unido e na Holanda, por exemplo, o estoque público de habitação, mantido pelo governo e cedido para inquilinos de baixa renda, deixou de ser público. Processo semelhante ocorreu em antigos países soviéticos, como Estônia e Eslovênia.

No caso da Inglaterra, por exemplo, parte desta privatização foi a venda, com desconto, para os próprios locatários. Foi a virada da chave para que a “casa própria” passasse a ser vista como única forma de acesso à moradia. O problema é que este modelo não é sustentável, em especial para as pessoas de rendas mais baixas. Na Inglaterra, 1,8 milhão de pessoas compraram suas casas do governo nas últimas três décadas. Ainda assim, há hoje outras 1,8 milhão na fila para moradia social, além de 650 mil vivendo em condições de superlotação.

“[A lógica da casa própria] Implica em um movimento de destruição das políticas de moradia, da universalização do acesso via provisão estatal, para a direção da promoção da moradia como bem individual adquirido via mercado e acessado via crédito financeiro”, explica a professora, em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo.

Nos Estados Unidos, os empréstimos subprime foram criados nos anos 1960 para dar acesso à casa própria aos negros e hispânicos. São empréstimos bancários a juros altíssimos que muitas vezes são baixos, nos primeiros anos, e vão a níveis estratosféricos após um certo período. Quando este dia chega, vem a hipoteca. É como se o usuário vendesse ao banco a promessa de que vai pagar a dívida.

Assim surgem empréstimos para pagar empréstimos, e a dívida deixa de ser imobiliária. Passa a ser um papel flutuante no mercado financeiro. É um outro lado da tese da financeirização. A casa vira dívida, que vira ativo, que vira mercado financeiro. Quando o mercado quebra ou tira seu dinheiro para investir em outro lugar, o ativo perde força, a dívida cresce e a casa “some”.

Brasil e companhia

No Brasil, a história é um pouco diferente. “A ideia da casa própria já estava presente há muito tempo. Desde a constituição do BNH [Banco Nacional de Habitação] nos anos 1960, a política habitacional nasce marcada pela ideia da relação entre a indústria da construção civil e o sistema financeiro. [Predominava] a ideia da moradia não como necessidades habitacionais das pessoas, mas sim como esfera econômica de produção de espaço construído.”

Foi assim que surgiu a ideia do “déficit habitacional”. “Que é uma falácia. Leva em conta que a política deve ser construir casas, quando não é necessariamente isso”. É um modelo que fica evidente no Minha Casa, Minha Vida. “O Minha Casa é uma forma de fazer com que o mercado oferte um produto, só que não há dinheiro para comprar. Aí o Estado dá dinheiro para as pessoas comprarem este produto que o mercado oferta.”

Para a professora, o programa é um modelo de subsídio para a indústria da construção civil, que não necessariamente leva em conta a demanda por moradia das pessoas. A ideia não é nova. Surgiu no Chile de Pinochet, nos anos 1980. E lá, bem como no México e no Brasil, uma característica deste modelo é que os conjuntos habitacionais são construídos em áreas extremamente periféricas.

O que leva a um outro problema: o do acesso à cidade. “A moradia é, na verdade, uma porta de acesso à cidade, às oportunidades que a cidade oferece, ao trabalho, à renda, à educação, à saúde, ao meio ambiente diversificado e saudável. Não é o que um renque de casas produzidos no meio do nada oferece.”

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Legado da Copa e os grandes eventos

Em 2012, a Gazeta do Povo acompanhou a Raquel Rolnik em visita a Curitiba, para acompanhar comunidades que poderiam ser impactadas pela Copa do Mundo. Como Relatora da ONU para Moradia Adequada, ela recebeu muitas denúncias de violação do direito à moradia causadas pelos jogos. Daí a rodada de viagens às cidades-sede. A arquiteta também enviou uma série de questionamentos à Fifa, responsável pelo evento, e, à época, ficou sem resposta.

Rua na Vila Nova Costeira , em São José dos Pinhais, está ameaçada pelo projeto da terceira pista do aeroporto Afonso Pena – ideia que é quase saiu do papel para a Copa do Mundo de 2014.Henry Milleo/Arquivo/Gazeta do Povo

“Uma coisa anedótica é que perto da Copa, já em 2014, a Fifa me procurou para falar das denúncias de violação, que tiveram repercussão até internacional. Eu falei ‘mas eu tenho enviado correspondência para vocês direto, desde 2009’, e a resposta foi: ‘ah! Acho que você mandou para o número errado de fax’”.

Um dos locais visitados foi a Vila Nova Costeira, em São José dos Pinhais. Os cerca de vinte mil habitantes da região estavam prestes a ser desalojados, para dar lugar à terceira pista do aeroporto Afonso Pena. Foram salvos pela suspensão da obra, fruto da falta de entendimento entre governo do estado e Infraero. A suspensão das obras salvou comunidades de remoções no Brasil inteiro, segundo Rolnik.

“Evidentemente que não é proibido fazer remoções. Muitas vezes é inclusive necessária. Mas a forma como isso é feito, desrespeitando totalmente o direito das pessoas, é que foi totalmente criticado. Uma das violações é que é totalmente invisível. A gente não sabe exatamente qual foi o destino das pessoas. Quantas foram para o Minha Casa, Minha Vida? Onde? Quantas receberam indenizações? Qual valor? Então parte da luta é tornar este processo claro, transparente, visível, planejado e contabilizado”.

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