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“Guerra contra crimes sexuais envolvendo crianças é tecnológica”, diz especialista em cibercrimes
Luiz Walmocyr, agente da Polícia Federal especialista em cibercrimes| Foto: Comunicação Fenapef

Entre 2014 e 2016, uma operação da Polícia Federal (PF) dedicada a combater redes de pornografia infantil identificou 182 usuários de um fórum com quase 10 mil membros que produziam e compartilhavam materiais pornográficos relacionados a crianças e adolescentes. As duas fases da operação Darknet resultaram em dezenas de detenções e na prisão de elementos-chave da rede criminosa em diversos estados do país.

A operação foi destaque não só no Brasil, mas em vários outros países devido ao seu caráter pioneiro: a Darknet foi a primeira investigação brasileira realizada na darkweb – ambiente altamente criptografado em que os usuários se mantêm anônimos, favorecendo práticas criminosas. Agentes policiais se infiltraram nesses fóruns e, com a ajuda de um software produzido própria PF, conseguiram quebrar o anonimato de um grande número de aliciadores infantis e produtores de materiais pornográficos.

No ano passado, o sucesso da operação Darknet tornou-se conhecimento científico a partir da publicação de um artigo na revista britânica Nature, uma das mais renomadas revistas científicas do mundo. No artigo, os agentes Luiz Walmocyr Junior, Bruno Cunha e Jean Fernando Passold apresentaram as estratégias usadas na operação.

Nesta entrevista exclusiva, a Gazeta do Povo conversou com Luiz Walmocyr, integrante do Grupo de Repressão a Crimes Cibernéticos (GRCC) da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, autor do livro Protegendo Anjos (que aborda a problemática do abuso sexual infantil) e um dos agentes que participaram da publicação do estudo científico sobre a operação Darknet.

O policial aborda os cuidados a serem observados por pais e responsáveis para prevenir abusos infantis, instrui sobre o que fazer ao identificar um possível caso de aliciamento e comenta a respeito da operação responsável por identificar e prender vários criminosos sexuais e da publicação do artigo científico na revista Nature.

Como você avalia o combate à pornografia infantil e à pedofilia no Brasil nos últimos anos? Tem havido mais avanços ou mais retrocessos?

Luiz Walmocyr: Antes de responder à pergunta, vale dizer que a PF entra nessas questões de abuso sexual infantil quando há dois pré-requisitos: o conteúdo de pornografia infanto-juvenil precisa estar na internet; e deve haver internacionalidade. Se há um grupo restrito a brasileiros, então não há internacionalidade e não haverá atuação da Polícia Federal, mas sim das polícias civis dos estados.

Dentro desse universo gigantesco que é a pornografia e o abuso sexual infantil, a PF pega só uma pontinha e mesmo assim é gigante. Apesar de ser um campo mais restrito devido a esses dois pré-requisitos, acabamos chegando a produtores de material pornográfico e abusadores.

Se comparar a quando entrei para o GRCC, em 2010, para o que acontece hoje, obviamente os meios para distribuição de pornografia infantil aumentaram. Naquela época, as redes socais, por exemplo, não estavam consolidadas. Hoje há inúmeras plataformas; o campo em que esses indivíduos jogam aumentou. Mas, em compensação, também aumentou proporcionalmente o interesse por parte da sociedade, a capacitação das polícias e o próprio interesse de atuação pelos agentes e a constatação da gravidade que esse problema representa.

Ou seja, há mais espaço para que isso ocorra, mas também há muito mais interesse da sociedade, o que inclui iniciativas não governamentais que visam a proteção da criança na rede.

Com crianças tendo acesso a redes sociais e aplicativos de mensagens cada vez mais cedo, quais são os principais riscos a que elas estão expostas no ambiente on-line?

Luiz Walmocyr: É importante dizer que esses abusadores normalmente começam a entrar em contato com as crianças se passando por outras crianças, utilizando perfis falsos de crianças que são famosas, ou ainda como se fossem um amiguinho.

Primeiro ele começa a conversar para ganhar confiança. Ele se torna um confidente. E muitas vezes essas crianças já estão próximas à pré-adolescência e confidenciam algumas coisas para esses indivíduos. Num segundo momento, se a criança para de colaborar para os objetivos dele, ele começa a fase de chantagens e ameaças. Muitas vezes a criança até já contou onde mora, e o indivíduo se aproveita disso para ameaçar. Ela não consegue lidar com isso e vai ficar muito insegura. Como muitas vezes há receio de falar com os pais, a criança cede ao que o aliciador quer.

Quanto aos objetivos desses indivíduos, na grande maioria das vezes é produzir pornografia infantil remotamente. Primeiramente ele quer produzir essas imagens e satisfazer a própria libido. Depois, esse material também vai servir como moeda de troca em grupos organizados com consumidores de pornografia infantil, que são pedófilos. Isso até engrandece esses indivíduos nos grupos.

Esses grupos são fóruns situados tanto na internet comum quanto na darkweb. Além de trocarem material – o que já agride a dignidade da criança – eles também incentivam outros a fazerem a mesma coisa, além de trocar conhecimento sobre como driblar investigações, sobre métodos de aliciamento de crianças e até em alguns casos sobre como entorpecer essas crianças caso haja contato.

E aí é o segundo passo: esse indivíduo que, inicialmente, quer produzir material pode passar a querer um contato real com a criança. Quando a criança envia a primeira imagem de pornografia infantil, ela passa a ser quase uma escrava desse aliciador, porque ele começa a ameaçar. Depois dessas primeiras imagens, o indivíduo começa a ficar cada vez mais exigente porque consegue fazer com que a criança faça o que ele quer. É um percurso que ele vai construindo com paciência, ganhando a confiança da criança aos poucos.

Vale dizer que essa é uma parcela desses criminosos, que busca conseguir a confiança das crianças pela internet. Mas tem outro grupo: 80% dos abusos são cometidos por alguém próximo da criança, alguém que a criança já confia de alguma forma – um parente, um amigo da família ou um vizinho, por exemplo.

Como pais e responsáveis podem proceder para evitar que seus filhos sejam vítimas desses aliciadores e abusadores?

Luiz Walmocyr: Antigamente havia a lenda do “Velho do Saco”. Os pais diziam para a criança se cuidar e para não falar com estranhos na rua. Os pais, na verdade, estavam nos protegendo. Mas hoje esse “Velho do Saco” não atua mais só na rua, ele está nas redes sociais. Então quando se tem filhos utilizando esses dispositivos de acesso à internet, como celular, tablet, televisão, computador, é preciso ter esse mesmo cuidado que nossos pais falavam antigamente.

“Não ande na rua sozinho”, “não fale com estranhos”, “não aceite bala de estranhos” – tudo isso tem que ser transposto para a tecnologia. Os pais têm que conhecer quais plataformas seus filhos usam e orientá-los quanto ao uso correto. Precisam explicar que a criança não sabe quem está por trás do computador; pode parecer uma criança, mas às vezes não é. Precisam também orientar os filhos a conversar com os pais e contar a eles sempre que algo estranho acontecer. É muito importante essa via de mão dupla para que as crianças utilizem bem a internet.

E mais importante ainda: os pais têm que observar o que as políticas de uso da própria plataforma recomendam. Você vê hoje crianças de seis, sete anos que mal se alfabetizaram utilizando Instagram, WhatsApp, Facebook quando as próprias plataformas exigem uma idade normalmente acima de 13 anos para uso.

Tudo o que estamos falando é sobre prevenção. Depois que algo acontece vira caso de polícia, mas aí o mal já aconteceu. Mesmo o indivíduo sendo punido, nada vai mudar o fato de a criança já ter sido vitimizada.

Há ferramentas de controle parental que permitem que pais e responsáveis tenham acesso às conversas dos filhos e a demais registros de sua navegação. Esse tipo de monitoramento é positivo?

Luiz Walmocyr: Como especialista na área, costumo falar que é preciso medir muito bem a questão da confiança que a criança tem nos pais e o dano que pode ocorrer caso os pais quebrem essa confiança. Numa medida extrema, como por exemplo se os pais perceberem uma determinada conversa e a criança negar, talvez realmente seja preciso recorrer a um programa de controle parental e acessar as conversas. Mas sempre priorizando a questão da confiança. Isso pode quebrar uma relação de confiança recíproca, e é essa relação que tem que ser valorizada; a criança tem que se sentir à vontade para falar com os pais sobre esses assuntos.

A partir do momento em que os pais identificam um possível caso de aliciamento, o que se deve fazer?

Luiz Walmocyr: De modo geral, quando os pais ou responsáveis detectarem isso, a primeira coisa é não alertar o indivíduo. Eles devem procurar uma unidade policial e levar o celular ou o dispositivo que a criança utilizou para se comunicar para que essas conversas sejam extraídas de maneira forense.

Às vezes, o pai tira um print screen ou imprime as conversas, mas nisso podem se perder dados importantes, dados que permitam identificar esse aliciador. Além disso, as provas precisam ser robustas para convencer um juiz, por exemplo.

É, portanto, essencial comparecer à delegacia para coletar as provas, fazer registro da ocorrência e ter todas as demais orientações.

Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre operação Darknet, que quebrou o anonimato de um grande número de pedófilos. Quais foram os principais aprendizados dessa operação?

Luiz Walmocyr: A operação atuou diretamente no que chamamos de darkweb, por isso o nome Darknet. A darkweb é um ambiente que visa o anonimato, visa tornar impossível o rastreamento dos usuários. E é lá que estão os fóruns em que há troca de informações sobre diversos crimes, incluindo pornografia infantil e pedofilia.

Dentro desse ambiente, o objetivo é mascarar o endereço de IP, que é o que identifica a pessoa na rede, e essa é a maior dificuldade. Além disso, há criptografia total. É por isso que criminosos usam tanto a darkweb.

O que fizemos foi não somente descobrir o IP real desses indivíduos, mas também ver o que eles estavam trafegando. Isso é realmente um fator de orgulho da Polícia Federal e nos alegrou muito porque conseguimos um resultado muito positivo. Fomos pioneiros nesse tipo de ação no Brasil e uma das primeiras policias do mundo a realmente atuar dentro desse ambiente. Tivemos vários policiais muito bons com esse objetivo de proteger as crianças dentro de um ambiente que até aquela data nunca havia sido atacado.

Antes mesmo da deflagração da operação tivemos que fazer operações cirúrgicas para recuperar crianças que estravam em condições de vulnerabilidade física e sexual. No dia da deflagração, batemos nas portas das pessoas certas. Tudo isso acaba quebrando esse paradigma do anonimato total, da criptografia e da não identificação dos endereços de IP reais.

Se você faz uma operação como essa, é óbvio que os criminosos vão buscar outros meios de proteção. Esses aliciadores vão aprendendo nos próprios fóruns a se proteger, vão trocando informações, se especializando e ficando cada vez mais sofisticados. E a polícia fica sempre buscando acompanhar essa sofisticação. Estamos sempre buscando apurar ferramentas e técnicas de investigação.

Muitas vezes é preciso desenvolver uma ferramenta própria. Na operação Darknet, nós atuamos com ferramentas desenvolvidas pela Polícia Federal. O que se ganha com isso é conhecimento. Esse acompanhamento é tecnológico, científico – a polícia tem que ser científica. O crime está migrando pesado para a tecnologia, então a polícia tem que se especializar, tem que ser atrativa para que pessoas qualificadas venham e para que estejamos sempre capacitando esses profissionais porque essa guerra é tecnológica.

Quanto ao estudo científico publicado na revista Nature, qual é a importância desse conhecimento produzido aqui no Brasil para o enfrentamento de crimes cibernéticos em escala mundial?

Luiz Walmocyr: O Bruno Requião [um dos agentes da PF que integrou a pesquisa] é um físico que atua com ciência de redes. Essa ciência estuda como as estruturas do crime se organizam e como interromper a estrutura desse crime sendo mais eficiente. Às vezes, prende-se o chefe, mas ainda tem uma estrutura pronta para manter o crime em funcionamento. Essas interações matemáticas permitem atacar de forma que se destrua essa rede do jeito mais eficiente possível. Tínhamos uma rede dentro da operação Darknet e pedimos autorização judicial para poder fazer acompanhamento científico disso.

Então cada um daqueles indivíduos deixou de ser uma pessoa. Pegamos todas aquelas informações, transformamos em matrizes matemáticas e equações e analisamos como aquela estrutura de rede se comportava. E acabamos constatando outra questão sobre o comportamento dessas redes – cada uma delas têm comportamento próprio; o comportamento específico dessa em que atuamos, por exemplo, era bastante semelhante a uma rede de terrorismo. Isso conseguimos constatar matematicamente. Como essa ciência é recente, ainda há uma carência muito grande de periódicos, de artigos, de informações em geral. Fomos selecionados através do Bruno Requião, que estava fazendo um pós-doutorado em Matemática Aplicada na Irlanda. E nós, aqui no Rio Grande do Sul junto com ele, fizemos esse trabalho que foi publicado possivelmente na revista científica mais importante do mundo. Isso mostra como a questão da “criminofísica” [abordagem de crimes sob a ótica de campos como a física, a matemática e as ciências de redes e de dados] é tão importante para essas abordagens no futuro, e como é importante uma polícia cada vez mais científica.


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