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Edificação dos agricultores queimada pelos agentes do Ibama durante operação.
Edificação dos agricultores queimada pelos agentes do Ibama durante operação.| Foto: Arquivo pessoal

Com 11 mil habitantes e área total de 14,3 mil quilômetros, o município de Senador José Porfírio fica no sudeste do Pará, a 800 quilômetros da capital, Belém. A cidade tem área equivalente ao país asiático de Timor Leste, para uma população pouco menor do que o total de moradores do distrito paulistano da Barra Funda.

É uma região pobre: apenas 5,8% da população têm emprego formal, e mesmo entre esses privilegiados a renda média não passa de 2,2 salários mínimos. Apenas 6,5% dos imóveis contam com esgotamento sanitário adequado. Para chegar ao município a partir de Altamira, a cidade grande mais próxima, é preciso encarar uma viagem de balsa de 40 minutos, mais um trajeto de carro de mais de duas horas. A falta de infraestrutura e de recursos não é o único problema local. Nos últimos meses, Senador José Porfírio se tornou o centro de um confronto polêmico entre agricultores e autoridades.

De um lado, agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) atuam, desde o início do ano, em uma operação cujo objetivo é conter o desmatamento de várias áreas indígenas da região, em especial Ituna-Itatá, que tem 142 mil hectares, considerada a área mais desmatada do Brasil atualmente.

De outro, os agricultores da região alegam que têm direito a morar e trabalhar na área, e se dizem perseguidos pelos fiscais, que teriam incendiado suas casas e deixado duas centenas de famílias desabrigadas, incluindo mulheres e crianças. Na base do conflito está uma dificuldade, muito comum na Amazônia, em identificar a posse legítima de cada pedaço de terra.

A versão dos agricultores

Os trabalhadores que são alvo da operação do Ibama foram levados para a região pelo próprio governo do estado, em 2009. “Por meio de um acordo com os governantes da época, os trabalhadores rurais deixaram suas terras, localizadas ao lado direito do Rio Bacajaí, em troca de uma nova área para o seu remanejamento”, afirmou o senador Zequinha Marinho (PSC), crítico da operação do Ibama. A região de onde os moradores foram retirados seria utilizada para a construção da hidrelétrica de Belo Monte. “Esta área é justamente a que hoje está no epicentro do conflito no município de Senador José Porfírio. Ocorre que, assim como em todo o território paraense, a maioria dos produtores rurais não têm a posse das terras”.

Um dos líderes dos moradores da região, Antônio Gonçalves de Lima, afirma que sua família está entre as que perderam tudo. “A operação do Ibama foi muito violenta, fora de controle. Os agentes chegaram nas propriedades sem aviso prévio, expulsando o pessoal. Estamos num cenário de guerra. Crianças andando a pé na lama, famílias no relento, mulheres sem abrigo”. Na estimativa dele, cerca de 50 casas, além de duas igrejas e uma escola em construção, foram queimadas. “Eu estou aqui há três anos, mas a maioria dos moradores foi realocada pelo governo estadual em 2010. Essas pessoas receberam do Instituto de Terra do Pará uma carta de concessão de uso da propriedade”.

Para o senador do PSC, “o Ibama deve atuar na fiscalização, na orientação e até mesmo no processo educativo da população local, para que sejam contidas as ações de desmatamento ilegal. No entanto, não se pode tolerar abusos de poder contra a população que lá reside”.

Zequinha Marinha relata: “Ainda em janeiro, quando fui tratar da operação que acontece em Senador José Porfírio com o presidente do Ibama, levei fotos e vídeos de casas, automóveis, sacos de alimentos e outros bens completamente destruídos pela ação de parte dos fiscais. Alguns agentes do Ibama atearam fogo nas residências, excedendo do poder que a lei lhe reserva. São casos que atentam contra os direitos humanos, de humilhação de produtores e trabalhadores rurais, muitos dos quais foram levados pelo governo para ocupar aquela área”.

“Essa região sofreu os impactos da abertura da rodovia Transamazônica, nos anos 70”, afirma o antropólogo Edward Luz, que presta consultoria para os agricultores e, nos últimos anos, se especializou em questionar a demarcação de terras indígenas. “A região abriga quatro terras indígenas, que abrigam cinco grupos, nenhum isolado. Você sai de Altamira e anda 250 quilômetros em linha reta para sair de terra indígena”.

A terra em que ocorrem as atuais ações do Ibama, Ituna-Itatá, tem 142 mil hectares e está em processo de demarcação desde 2011 – a portaria da Fundação Nacional do Índio (Funai) que determinou a realização de estudos para localizar índios isolados na área determina que haja “restrição de uso” na região; ela foi publicada meses depois do acordo firmado pelo governo do Pará com os moradores, em 2010.

A nova reserva abrigaria um ou mais tribos que teriam optado por permanecer sem contato com o restante da sociedade. “Existem relatos esparsos, datados dos anos 1970, alegando que existiriam índios isolados ali. Ninguém mais os viu. Se existiram mesmo, podem ter morrido, ou abandonado o isolamento”, alegou Edward Luz.

A versão das autoridades

Para cumprir a portaria de 2011, fiscais do Ibama começaram a atuar na região no início do ano. Encontraram aeroportos e postos de combustíveis, supostamente clandestinos. Procurado pela reportagem, o órgão respondeu por escrito: “A Terra Indígena (TI) Ituna/Itatá é região habitada por índios isolados, por isso, com restrição de acesso, locomoção e permanência de pessoas que não sejam agentes do Estado. Em função dos altos índices de desmatamento observados, a fiscalização atua constantemente na região com o objetivo de conter o desmatamento ilegal na TI”.

Questionado se houve abuso de força nas ações, o Ibama respondeu que “quando ocorre a inutilização de estruturas, produtos e instrumentos associados ao desmatamento em Terras Indígenas, a ação ocorre estritamente nos limites estabelecidos pela legislação pertinente”, disse o órgão, em nota.

Em nota pública, o Ministério Público Federal defendeu os agentes. “Há respaldo legal tanto para a retirada de pessoas quanto para a destruição de maquinário apreendido no local. O MPF alertou que a terra, embora ainda não demarcada, está protegida por ato formal de interdição da Funai, e não pode ser degradada. O MPF ressaltou no encontro que a proteção ambiental independe de a terra estar formalmente demarcada, tendo em vista que atividades como a extração de madeira e a criação de gado necessitariam das devidas autorizações, mesmo que não se tratasse de área da União”.

“Ações criminosas perpetradas por grileiros, em qualquer área, e de pessoas que não se encontram em condição de vulnerabilidade social continuarão a ser combatidas pelas ações de fiscalização local e serão alvo de investigação pelo MPF", afirmou o Ministério Público Federal.

Uma reunião realizada no último dia 11, em Brasília, suspendeu por 30 dias a operação do Ibama. Participaram procuradores da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, além do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Ficou definido que a fiscalização dentro da área de reserva permanece.

O objetivo é aproveitar o período para remover e realocar os moradores em situação de vulnerabilidade social. Durante o encontro, Ricardo Salles informou que iria monitorar diariamente a área, por satélite, para retomar as ações caso novos desmatamentos fossem identificados.

Segundo Antônio Gonçalves de Lima, o acordo não foi cumprido. “Os fiscais do Ibama continuam atuando, expulsando moradores e queimando tudo”, diz ele. Foi nesse contexto que o antropólogo Edward Luz foi detido, no último domingo. Ele tentou interromper uma ação de fiscais, citando o acordo firmado dias antes e mencionando o nome do ministro Ricardo Salles.

Falta regularização

Uma forma de reduzir esse tipo de conflito, tão comum na Amazônia toda, é melhorar a política de regularização de propriedades. “Hoje 70,93% do território paraense é formado por terras da União, e 23,33% está sob responsabilidade do estado. Em pleno século 21, não conseguimos determinar se determinada área é da União ou do Estado”, declarou, em audiência pública realizada em fevereiro no Senado, Bruno Kono, presidente do Instituto de Terras do Pará (Iterpa).

“A ausência do Estado gera grilagem de terras. Quando eu tiro acesso a crédito, eu tiro a possibilidade de mudar meu sistema de produção”, explicou Kono, lembrando que parte expressiva dos prejudicados pela falta de acesso a documentos de posse é composta por agricultores familiares, que respondem por 82,88% dos 31.503 pedidos de regularização fundiária em análise no Pará neste momento.

Procurado para tratar da situação dos agricultores na região, o instituto se manifestou por e-mail, por meio da assessoria de imprensa do governo estadual: “A competência para a demarcação de Terras Indígenas é do Governo Federal. O Iterpa também esclarece que não tem conhecimento sobre o andamento do processo demarcação do citado território”.

“É urgente avançar com a titulação das terras, dar a posse aos trabalhadores rurais. Além de resolver o conflito, a regularização fundiária apresenta soluções para frear o desmatamento ilegal na Amazônia. Isso porque, no momento em que a terra passa a ter dono, o CPF da pessoa fica diretamente associado e, em caso de qualquer evidência de ilegalidade, as sanções serão aplicadas em cima da pessoa”, afirmou o senador Zequinha Marinho.

“Estou bastante confiante nas ações coordenadas pela Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Até 2022, o governo pretende emitir mais de 600 mil títulos em todo o país, com destaque para a Amazônia, onde os conflitos agrários são mais recorrentes”.

O governo federal tem um projeto de emissão de documentos regularizando imóveis, a MP 910. A proposta está em análise no Congresso.

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