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Entendimento consagrado pelo STF pode provocar efeito cascata em tribunais brasileiros| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Os inquéritos que se propõem a apurar tentativas de intimidação a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consagraram um entendimento da lei que já chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pode atingir em efeito cascata tribunais de segunda instância, como os Tribunais Regionais Federais (TRFs) e os Tribunais de Justiça (TJs).

Embora o regimento interno de alguns tribunais já previsse a possibilidade de instauração de inquéritos, essa não era, até pouco tempo atrás, uma prática comum na Justiça brasileira. Mas, inspirado no precedente criado pelo STF com os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, abriu um inquérito para apurar intimidação contra magistrados de sua Corte por parte de procuradores da Lava Jato.

“Ao sentir o respaldo do STF para tomar aquela atitude, o STJ simplesmente foi no vácuo do STF. Seguiu no vácuo do STF para tomar as suas dores da mesma forma”, diz o jurista Benedito Villela, professor de Direito do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) São Paulo.

Não é improvável que a mesma lógica seja seguida em tribunais de segunda instância. Ao ter sido tomada pelo STF, a decisão passa a valer para qualquer tribunal que, em seu regimento interno, também permita a instauração de inquéritos.

“O Supremo julgou isso numa ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que é uma ação com efeito vinculante. Os demais órgãos do Poder Judiciário acabam seguindo esse posicionamento”, explica Felipe Balera, doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.

Tanto no STF como no STJ, as decisões de instaurar os inquéritos relacionados a intimidações contra magistrados foram tomadas com base em interpretações controversas dos regimentos internos das Cortes. Em ambos os casos, os textos dos regimentos indicam a possibilidade de instauração de inquéritos pela própria Corte em caso de “infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal” – no caso do STF, isso consta no artigo 43; no do STJ, no artigo 58.

Proliferação de inquéritos judiciais é uma anomalia jurídica

A instauração de inquéritos por parte da própria Corte sempre foi considerada um recurso para casos excepcionais em democracias. Por isso, a possibilidade cada vez maior de que isso se torne uma prática convencional em tribunais brasileiros é vista por especialistas entrevistados pela Gazeta do Povo como uma anomalia e mais um sintoma do crescimento do ativismo judicial.

"Não é uma prática comum. Sempre houve uma separação muito grande dos poderes e, acima de tudo, sempre houve também certa invulnerabilidade dos poderes”, diz Villela.

“A imparcialidade do magistrado é o que ele tem de mais sagrado. Quando o magistrado se envolve na investigação, a imparcialidade dele fica comprometida. Ele não pode ter protagonismos. A partir do momento em que o juiz participa da investigação, a imparcialidade dele fica em xeque”, diz Andrew Fernandes, advogado criminalista e sócio do Bayma e Fernandes Advogados Associados. Para ele, o precedente aberto é perigoso, e a possibilidade do efeito cascata é real. “Se a Suprema Corte fez, por que um Tribunal de Justiça não poderia fazer, ou um Tribunal Regional Federal?”, questiona.

Na opinião de Villela, a popularização dos 11 ministros do STF na década de 2000, especialmente depois do escândalo do mensalão, deu início a um ativismo judicial que desembocou, hoje, em anomalias como a instauração de inquéritos em que a Corte atua como vítima e acusador ao mesmo tempo. “Começou-se a prestar muito mais atenção ao Judiciário como um todo. Começou a haver um Judiciário mais ativo, em todas as instâncias, um Judiciário que, de certa forma, buscava holofote. O Judiciário, que era reativo, passou a ser proativo”, opina.

Passou a ser mais comum, a partir daí, que o STF modulasse leis que, em sua visão, o Legislativo não tinha esclarecido da forma correta. O Poder Judiciário deixou de simplesmente julgar se as leis são constitucionais ou inconstitucionais, e passou a estabelecer como a lei deve ser interpretada. “Ao fazer isso, o Judiciário começou a chamar a atenção e ser alvo tanto de críticas como de acusações de partidarismo. E esse tipo de coisa, desde o Joaquim Barbosa para cá, só vem se acirrando”, afirma Villela. “É um efeito cascata perigoso.”

Com seu crescente envolvimento na política, o Judiciário torna-se também um alvo mais frequente das críticas de membros de outros Poderes, e cede mais facilmente à tentação de querer combatê-los. “Isso é uma tendência muito forte, esse revanchismo judicial, agora que o Judiciário se sente empoderado a isso. A prisão do deputado não vai ser esquecida tão logo pelo Judiciário.”

Inquéritos do STF e do STJ colocam em risco o sistema acusatório no Brasil

Na democracia brasileira, adota-se o que os juristas costumam chamar de “sistema jurídico acusatório”, isto é, um sistema em que cada uma das funções de acusar, defender e julgar compete a um órgão diferente. Na opinião de juristas que falaram à Gazeta do Povo, a moda dos inquéritos judiciais cria uma ameaça a esse sistema.

“Eu tenho um órgão que acusa, outro que vai defender e outro que vai julgar. É um modelo de processo penal em que existe uma separação das funções, com direito ao contraditório, ampla defesa, etc. Na doutrina, a maioria sempre admitiu que o modelo brasileiro era o acusatório”, explica Fernandes.

Isso ficou explicitado no pacote anticrime de 2019, que estabeleceu no artigo 3º do Código de Processo Penal (CPP) que “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Temporariamente, esse artigo do CPP está suspenso, por decisão do ministro Luiz Fux, até que o julgamento do pacote anticrime seja feito.

Mesmo assim, segundo Fernandes, a Constituição deixa claro em vários dispositivos que o Brasil adota o sistema acusatório. “Ela criou o Ministério Público, que tem a atribuição de proceder à acusação, prevê o princípio do contraditório e da ampla defesa, prevê o princípio do devido processo legal, da transparência e da fundamentação das decisões… A Constituição claramente adotou o modelo acusatório. Qualquer dispositivo infraconstitucional que caminhe em sentido diverso é inconstitucional”, afirma o jurista.

Fernandes explica ainda que a discussão sobre se juízes poderiam requisitar a instauração de inquéritos não é nova. “Parte da doutrina entendia que isso violava o sistema acusatório, que a partir do momento em que o juiz determinava a instauração de um inquérito policial, comprometia a imparcialidade. O mais adequado seria que o juiz encaminhasse para o Ministério Público, e o Ministério Público, se entendesse que houve crime, pedisse a instauração do inquérito policial ou instaurasse um procedimento para apurar o fato”, explica.

Com os recentes inquéritos instaurados por ministros, a ameaça de violação ao sistema acusatório é real. “É perigoso que o STF comece a instaurar uma série de inquéritos. Se isso se tornar a regra, e não a exceção, a gente teria uma violação ao sistema acusatório”, alerta Balera.

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