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Para Sandel, é possível que violar as normas sociais na vida cotidiana acaba criando atitudes na sociedade como um todo. | Wikimedia Commons/
Para Sandel, é possível que violar as normas sociais na vida cotidiana acaba criando atitudes na sociedade como um todo.| Foto: Wikimedia Commons/

Acostumado a enfrentar grandes palcos e audiências inquietas ao falar sobre ética, o filósofo americano Michael Sandel, professor da Universidade de Harvard, quase perdeu o fio da meada diante de tantas confissões no estúdio de TV.

Uma convidada disse que subornaria um policial se precisasse seguir de carro com um parente até o hospital. Outra contou que comprara DVDs piratas para os filhos.

Dedos se levantavam para admitir pequenos delitos. Por fim, o próprio apresentador do programa afirmou que não via problemas em avisar a um amigo sobre a presença da Lei Seca na rua.

Michael Sandel gravou para o Caldeirão do Huck no mesmo dia em que o presidente interino, Michel Temer, fazia o discurso de posse em Brasília (no dia 12). Para receber um dos mais badalados filósofos contemporâneos, titular do famoso curso “Justiça”, de Harvard, e capaz de fazer o público na Ásia pagar ágio para vê-lo, Luciano Huck montou uma mesa redonda no estúdio I do Projac, com poucos convidados, fundo preto e clima de papo sério. Poupou-se das brincadeiras habituais. Buscava, no convidado estrangeiro, a resposta a uma pergunta do filho Joaquim, de 11 anos, que quis saber o que era ética.

Mas Sandel, um tanto atordoado ao conhecer em múltiplas formas o jeitinho brasileiro de lidar com os limites legais, só conseguiu refletir mais tarde, no hotel em São Paulo, sobre o que ouviu. Com o cuidado de não julgar a crise política brasileira e nem pincelar as suas conclusões de teses acadêmicas, ele regressa aos Estados Unidos pensando que pode haver ligação entre os maus hábitos do dia a dia e a corrupção em grande escala.

“Alguns sugeriram que ignorar a lei ou violar as normas sociais de pequenas formas, na vida cotidiana, acaba criando atitudes na sociedade como um todo que levam à corrupção nas empresas e na política, por exemplo. Se isso for verdade, então talvez haja uma ligação entre as pequenas violações da lei ou valores e a corrupção em grandes instituições. Não tenho uma resposta clara a esta pergunta, mas a conversa fez-me pensar que pode haver a ligação.”

Michael Sandel Filósofo americano

Huck tinha entre os participantes o músico Tony Bellotto, dos Titãs, mas a lista de convidados do Caldeirão era encabeçada pela cozinheira pernambucana Hellena Mary, de 34 anos. Ela tornou-se conhecida após gravar um vídeo, viralizado na rede (600 mil compartilhamentos) , com críticas ao país “onde a esperteza é a moeda sempre mais valorizada” e “onde as pessoas atiram lixo na rua e, depois, reclamam do governo porque não têm esgoto”. Mas ela própria, confrontada com uma das muitas perguntas de Michael Sandel à assistência, capitulou. Confessou que paga R$ 5 por um DVD pirata para não deixar os filhos sem os filmes preferidos.

“Caldeirão do Huck” com Michael Sandel

Programa vai ao ar no dia 4 de junho

Ao topar a ida ao Caldeirão, onde repetiu o modelo de palestras levado mundo afora, no qual interage com o público o tempo todo, Sandel disse que o objetivo era debater os aspectos positivos do jeitinho – ”criatividade, encontrando um caminho através da burocracia ou ajudando um dos amigos” – e os negativos – “tirar vantagem dos outros ou desrespeitar a lei”. Ele percebeu que o brasileiro, em geral, lida com duas éticas: a pública, que não se importa em jogar lixo na rua ou comprar um produto ilegal, e a doméstica, na qual o mesmo cidadão faz questão de manter a casa limpa e reclama quando vê um corrupto exibido na tela da TV.

Convencido de que as escolhas éticas do dia a dia moldam o caráter dos cidadãos, o filósofo vê nos escândalos recentes que provocaram a mudança de comando no Brasil uma oportunidade de consolidação da democracia.

“Uma das maneiras de se aprofundar a democracia é reduzir o poder corruptor do dinheiro em campanhas políticas por meio de leis mais fortes que regem financiamento de campanha, algo que não conseguimos fazer nos EUA. A outra é incentivar os movimentos da sociedade no sentido de permitir que as pessoas se façam ouvir, dotando os cidadãos de competências que as decisões democráticas exigem.”

Michael Sandel Filósofo americano

O professor de Harvard também aposta no desenvolvimento de uma nova geração de líderes, “que não estejam contaminados pela associação com os partidos políticos desacreditados”, e na busca de uma abordagem mais ética no debate das grandes questões, incluindo os valores. O filósofo defende ainda que a mídia mostre-se mais interessada no diálogo público sobre questões éticas e que o currículo escolar seja transformado para incluir a educação ética e cívica: “Essas são algumas maneiras de se usar a crise para buscar um melhor tipo de política e um melhor tipo de cidadania democrática”.

Apesar da frustração generalizada com os políticos e os partidos políticos, que já levou manifestantes a expulsar parlamentares de atos públicos, o americano sustenta que não é possível fazer democracia sem representação.

“Mas precisamos complementar a democracia representativa com a participativa. Cidadãos democráticos devem ter uma palavra significativa a dizer sobre a forma como são governados. Hoje, alguns cidadãos sentem a necessidade de que suas vozes sejam ouvidas. Isto é verdade não só no Brasil, mas também em muitas democracias em todo o mundo”, disse Sandel.

Sandel: “é importante conectar a filosofia com o mundo”.

Wikimedia Commons

Huck, que disse no programa não ver problemas éticos em alertar um amigo sobre a localização da blitz da Lei Seca, permitindo que ele busque uma via alternativa, disse que convidou Sandel porque a TV aberta tem um enorme poder de influência que pode ser usado para o bem, permitindo que um filósofo faça o público refletir sobre o que é ética.

Ele garante que, depois de ser pego na Lei Seca e pagar uma multa, nunca mais bebeu antes de dirigir. “Temos que entender e ensinar aos nossos filhos os fundamentos da ética. Porque só conseguiremos ressignificar a palavra ‘política’ e corrigir os desvios de conduta no dia a dia se tivermos cidadãos mais conscientes de que pensar em todos é melhor do que pensar em si”, disse Huck.

Um dia antes da gravação, Sandel havia participado de um debate com jovens no Complexo do Alemão, promovido pelas ONGs Mapa e Instituto PDR. Um deles já havia sido preso. Em seguida, subiu os 365 degraus da escadaria da Penha. A visita durou quatro horas, Ele disse não ver problemas em popularizar o ensino da filosofia, pondo a ciência em contato com as camadas mais populares, como fez na TV.

“Alguns dos meus colegas acadêmicos escrevem sobre a filosofia de uma forma altamente abstrata, técnica. Há um papel importante para o trabalho acadêmico especializado deste tipo. Mas eu também acho que é importante conectar a filosofia com o mundo, para nos ajudar a refletir sobre os dilemas éticos que enfrentamos em nossas vidas diárias. Eu acho que há espaço para ambas as abordagens para a filosofia. Para mim, a filosofia não reside nas nuvens, mas na cidade, onde os cidadãos se reúnem”, disse Sandel.

O “Caldeirão do Huck” com Michael Sandel vai ao ar no dia 4 de junho.

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