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Milícia anônima persegue anunciantes para tentar fechar a Gazeta do Povo
| Foto: Gazeta do Povo

A milícia anônima Sleeping Giants Brasil começou na última sexta-feira (6) uma campanha para constranger os anunciantes da Gazeta do Povo. O objetivo do grupo é fazer com que o jornal de mais de 100 anos de atividade feche as portas. Hoje, os jornais têm duas principais fontes de renda: a verba publicitária e a carteira de assinantes.

O método da milícia funciona principalmente nas redes sociais. Ela “marca” o perfil das empresas e pede que deixem de anunciar no veículo até ter sua demanda atendida. Os anunciantes cedem ao pensar que podem estar à beira de uma crise de imagem. Não atender automaticamente à solicitação joga as empresas anunciantes na lista negra do bando, para virar alvo de uma onda de linchamento promovida pelos seguidores do grupo anônimo. Ou seja, há prática de intimidação.

Os ataques à Gazeta do Povo e a seus anunciantes começaram após o jornal informar que não iria afastar o colunista Rodrigo Constantino, envolvido em uma falsa acusação de apologia ao estupro. O colunista explicou sua visão sobre o tema debatido e pediu desculpas por excessos em texto publicado em seu blog. A Gazeta divulgou uma carta de esclarecimentos aos seus leitores, dando mais detalhes sobre a tomada de decisão. Mas isso não foi suficiente para o “tribunal” armado nas redes sociais. Até a tarde desta quarta-feira (11), treze empresas já haviam cedido às investidas do Sleeping Giants.

O que é o Sleeping Giants?

O Sleeping Giants Brasil, que exibiu viés político de esquerda desde a sua origem, no começo deste ano, iniciou a sua atividade no Brasil se vendendo como um movimento de caráter neutro, cujo único objetivo seria evitar a propagação de “fake News” por meio do boicote. Mas, nos últimos meses, a escolha enviesada de seus alvos escancarou um posicionamento político claro. Figuras públicas de esquerda são poupadas. Vozes de direita são perseguidas.

A página brasileira é inspirada em um movimento homônimo americano. A expressão “sleeping giants” significa gigantes adormecidos. O grupo americano também era anônimo, mas teve sua identidade desvendada pelo site de direita The Daily Caller.

Protegido pelo anonimato e pela aura de proteção aos direitos humanos, o grupo brasileiro dissimula seu viés político e convence muitas empresas a aderir ao boicote, especialmente por conta do impacto que o número de interações provoca nos tomadores de decisão das companhias.

“As redes sociais amplificam as vozes de gente que expressa uma revolta imensa. Dá a impressão, para o tomador de decisão, de que, de fato, o número de consumidores vai cair se ele não ceder a essa pressão. Num universo das redes sociais, com milhões de pessoas, se 1% dessas pessoas estiver revoltada, já são dezenas de milhares de pessoas revoltadas. É o suficiente para fazer parecer que o mundo está caindo”, diz Pedro Damazio, mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e especialista em liberdade de expressão.

Sleeping Giants comete atos ilícitos, diz especialista

O anonimato do Sleeping Giants, que confere à atuação do movimento uma aura de neutralidade, pode estar com os dias contados. Segundo o advogado Emerson Grigollette, especialista em direito digital e que vai atuar na defesa de Rodrigo Constantino, há vários indícios de atos ilícitos praticados pela milícia. Um exemplo recente é um tuíte que diz que Rodrigo Constantino “culpa a vítima de estupro”. Para Grigollette, trata-se de difamação.

O advogado diz que algumas postagens do Sleeping Giants envolvem “situações que podem causar lesão ao patrimônio moral da pessoa, aos direitos morais da pessoa”. É possível, portanto, acionar o grupo judicialmente, o que obrigaria as redes sociais a revelarem a identidade dos autores do perfil.

“A Constituição é muito clara em relação à vedação do anonimato. E por que existe essa vedação? Justamente para que seja possível identificar a autoria de eventuais crimes ou eventuais ilícitos para viabilizar que a pessoa seja responsabilizada pelos excessos que cometeu”, diz.

Mas isso não feriria o direito à liberdade de expressão? Grigollette explica que não. “Nenhum direito é pleno e absoluto. A liberdade de expressão não é um direito absoluto, como nenhum direito é. A Constituição, justamente para preservar a liberdade de expressão, permite que sejam manifestadas opiniões e pensamentos desde que seja possível a identificação da pessoa que está se expressando”, afirma.

Segundo o jurista, as redes sociais poderiam ser obrigadas a revelar a identidade do Sleeping Giants Brasil por conta de dispositivos do Marco Civil da Internet.  “As redes sociais têm responsabilidade de responder por eventuais crimes cometidos por terceiros quando elas não identificam os usuários. O Twitter, o Facebook e outras redes, como são prestadores de serviços de aplicações, têm por obrigação, pelos artigos 15 e 19 do Marco Civil da Internet, identificar os usuários.”

Sleeping Giants põe em risco a liberdade de imprensa

Ao incitar o tribunal da internet contra um jornal centenário, o Sleeping Giants também coloca em risco a liberdade de imprensa. Os anunciantes são uma das fontes de financiamento que ajudam a pagar os salários dos mais de 200 profissionais que trabalham no jornal. Muitos desses profissionais, aliás, manifestaram-se radicalmente contrários às opiniões de Rodrigo Constantino na carta em que solicitaram um posicionamento da direção do jornal sobre o colunista.

A atividade desses profissionais – que, na maioria dos casos, não são colunistas, mas jornalistas responsáveis por trazer aos leitores informações de interesse público fundamentais para o exercício da democracia – depende em grande parte do apoio financeiro dos anunciantes. Ao tentar secar essas fontes de financiamento, o Sleeping Giants age contra a liberdade de imprensa.

O exercício dessa pressão sob o véu do anonimato torna ainda mais patente o caráter de milícia da atuação do Sleeping Giants. “Na medida em que você está pressionando empresas e pessoas a agirem em uma determinada direção, o mínimo que você pode fazer, até por uma questão de respeito ao debate público, é colocar: ‘Olha, nós somos esta organização, composta por estas pessoas, que têm este tipo de visão de mundo etc.’ Com o anonimato, de quem é a responsabilidade pelos atos do Sleeping Giants? E se eles prejudicarem pessoas em sua vida profissional ou pessoal por causa da atuação dele? Ele não é responsável por isso?”, diz o sociólogo Lucas Azambuja, professor do Ibmec BH.

Damazio diz que o anonimato foi usado muitas vezes ao longo da história para fazer críticas a personagens poderosos sem sofrer retaliações, o que o tornava justificável. Mas, para ele, no caso do Sleeping Giants, a situação é diferente.  “Parece que o principal objetivo é incitar o tribunal da internet para ir atrás de pessoas e empresas que eles dizem que estão fazendo discurso de ódio, muitas vezes fazendo uma leitura muito simplista e sensacionalista de algumas situações”, afirma.

O especialista explica que o relativo sucesso da empreitada do Sleeping Giants se apoia, em grande medida, no desejo das pessoas de sinalizar virtudes por meio da indignação. “Discutir a questão, fazer distinções, entender as sutilezas, a complexidade do assunto, é secundário. O que é mais importante para as pessoas é expressar indignação. É o meio mais eficaz que existe para as pessoas se sentirem virtuosas. Sempre quando alguém está revoltado, indignado, as pessoas pensam: ‘Só uma pessoa realmente muito, muito boa poderia estar assim tão revoltada contra o mal.’ Se as pessoas querem se sentir boas, essa revolta é o caminho mais fácil. Dar um passo para trás, discutir as coisas com certo distanciamento, já é abrir uma margem de dúvida sobre sua virtude. É muito perigoso discutir as coisas com calma. Você pode parecer um insensível”, observa Damazio.

Além do efeito de sinalizar virtude, a indignação também acaba provocando um temor nas empresas sobre as consequências de não ceder à pressão. “O empresário pensa: ‘Bom, se as pessoas estão tão indignadas assim, elas vão queimar meu jornal, vão boicotar minha empresa… Às vezes é melhor, de repente, acatar isso.’ As pessoas que estão pensando, discutindo, ponderando, elas não nos chamam tanto a atenção assim, e não representam tanta ameaça assim. Então, geralmente, não influenciam tanto a decisão que essas empresas vão tomar quanto os indignados”, explica o especialista.

Liberdade de expressão não se constrói com intimidações

Para Marcelo Rech, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), a liberdade de expressão não se constrói com base em intimidações. Em nota, afirmou: “A verdadeira liberdade de expressão não é apenas a liberdade de eu me manifestar livremente, mas sobretudo de admitir que outros, por mais reprováveis que possam ser as manifestações e contanto que não firam as leis, tenham o direito de se expressar sem medo de represálias. A liberdade de expressão não se constrói com intimidações ou restrições a manifestações, mas com mais liberdade e ainda mais pluralidade. A opinião pública deve ter assegurado o acesso pleno a diferentes postos de vista, mesmo que mereçam reprovação, para que da divergência de visões, das críticas e da controvérsia se forme o julgamento livre de cada cidadão ou cidadã.”

A Gazeta do Povo procurou a milícia para se manifestar. Mas não recebeu uma resposta até a publicação da reportagem. A assessoria do Twitter enviou o seguinte comunicado: "Não nos cabe fazer uma análise da atuação deste ou daquele perfil na plataforma. Temos regras que determinam os conteúdos e comportamentos permitidos na Twitter e violações a essas regras estão sujeitas às medidas cabíveis. Além disso, sem entrar no mérito do caso específico, o que podemos dizer é que não existe vedação absoluta ao anonimato, pois eventuais ofensores podem ser identificados através do fornecimento de dados pelos provedores de aplicação, obviamente desde que preenchidos os requisitos legais para tanto, o que inclui fundados indícios da ocorrência de um ilícito."

Vale ressaltar que, em agosto, uma decisão da Justiça determinou que o Twitter derrubasse o anonimato do perfil. Na ocasião, a juíza Ana Paula Caimi, da 5ª Vara Cível de Passo Fundo (RS), intimou o Twitter Brasil a enviar à Justiça os dados cadastrais dos perfis Sleeping Giants Brasil e Sleeping Giants Rio Grande do Sul. A rede social preferiu pagar multa.

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