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Dados usados pelo Ministério da Saúde em audiência de 2018 no STF sobre o aborto foram deturpados.| Foto: Unsplash

Em nota técnica enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018, então membros do Ministério da Saúde durante o governo de Michel Temer (MDB) podem ter forjado estatísticas sobre mortes maternas decorrentes de aborto. É o que sugerem atuais membros da pasta em ofício encaminhado no mês passado ao STF no âmbito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, sobre a legalização do aborto no Brasil.

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Além da suspeita de falsificação de números, um dos dados que constava na nota técnica de 2018 foi apresentado de forma enganosa durante a audiência pública da ADPF 442, ocorrida em agosto daquele ano.

Segundo a versão escrita da nota, o SUS teria registrado, no total, 203 mortes maternas decorrentes de aborto em 2016, por variadas causas; mas, em sua fala na audiência, a representante do Ministério da Saúde disse que as 203 mortes ocorridas no SUS decorreram de abortos realizados de forma clandestina, e não especificou o ano em que isso aconteceu.

Um ofício enviado em 19 de dezembro de 2021 ao STF pelo secretário de Atenção Primária à Saúde na gestão de Jair Bolsonaro (PL), Raphael Câmara Parente, informa que não há registros no Ministério da Saúde sobre os dados relativos a óbitos maternos por aborto apresentados pela pasta em 2018. As informações foram requisitadas por Parente em 2021 ao Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis (DASNT), da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS).

Desde 2018, ativistas pró-vida levantam dúvidas sobre a confiabilidade dos dados apresentados pelo Ministério da Saúde naquela audiência. Os números foram usados para legitimar a tese de que os abortos clandestinos estariam sobrecarregando o SUS.

Gestão atual do Ministério da Saúde não encontrou registros sobre dados de aborto usados na audiência de 2018

Durante a audiência pública de 2018, a representante da Secretaria de Vigilância em Saúde afirmou que “as complicações do aborto inseguro” trazem uma “sobrecarga imensa” para o SUS, “totalmente evitável”. Para provar sua tese, apresentou dados que, segundo membros atuais da mesma pasta, não constam no sistema do Ministério da Saúde.

“O procedimento inseguro do aborto leva a mais de 250 mil hospitalizações no Sistema Único de Saúde por ano. Isso gera 15 mil complicações e 5 mil complicações extremamente graves – near miss, a quase morte – e 203 mortes. É quase uma morte a cada dois dias”, afirmou a representante na audiência de 2018.

Os dados apresentados no ofício que a atual gestão enviou ao STF no fim de 2021 apontam que, entre 2010 e 2019, nem sequer o total anual de mortes maternas por aborto chegou a 200 no SUS em qualquer ano.

A média de mortes maternas por aborto no SUS foi de 117,6 por ano, conforme dados do ofício. O ano de 2010 teve o número mais alto de mortes do período analisado: 154. Mas, desse total, não há dados sobre quantas mortes se deveram a complicações de abortos clandestinos. A principal causa de mortes maternas por aborto registradas pelo SUS nos últimos anos foi a gravidez ectópica.

Quanto às estimativas sobre aborto apresentadas pela antiga gestão, a atual equipe do Ministério da Saúde diz, por meio do ofício, não ter encontrado a origem dos dados que embasaram a nota técnica. Segundo o Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis, o sistema do governo não tem registros das estimativas divulgadas em 2018. A dúvida paira inclusive sobre as supostas 250 mil hospitalizações no SUS, as 15 mil complicações e as “5 mil complicações extremamente graves” por ano mencionadas pela antiga gestão.

“Infelizmente, não dispomos de registro sobre as estimativas realizadas, incluindo sua metodologia e período. Além disso, não encontramos publicação de tais estimativas após pesquisa realizada na literatura científica e publicações da SVS como, por exemplo, boletins epidemiológicos”, diz, no ofício, a atual gestão da Secretaria de Vigilância em Saúde, sobre os dados apresentados pela gestão anterior na audiência de 2018.

Servidora da gestão anterior afirma que secretário atual “não conhece nada sobre análise de dados”

Embora a origem dos números não esteja clara, eles continuam sendo citados por diferentes ONGs, meios de comunicação e até órgãos públicos, desde 2018, para validar a tese de que os abortos clandestinos estariam sobrecarregando o SUS. E, na maioria dos casos, mencionam-se os dados divulgados na audiência pública, que deturpam a própria nota técnica colocada sob suspeita.

Os dados comunicados na audiência foram citados, por exemplo, pelo Portal de Boas Práticas em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, que pertence ao governo (trata-se de uma iniciativa do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e Adolescente Fernandes Figueira (IFF), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Ministério da Saúde). Em um texto de novembro de 2019, esse portal afirma que houve “203 mortes maternas por aborto inseguro no ano de 2006” (a referência a 2006 é um provável erro de digitação, já que a nota técnica fala em 2016).

Por e-mail, a Gazeta do Povo questionou a antiga diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde, Maria de Fátima Marinho de Souza, representante do Ministério da Saúde na audiência de 2018, sobre as estatísticas apresentadas.

Ela afirma que Raphael Câmara Parente, atual secretário de Atenção Primária à Saúde, “não conhece nada sobre análise de dados” e “baseia suas conclusões na negação do fato”. Diz ainda que autoridades da atual gestão “estão omitindo dados”. “Se esse senhor soubesse e quisesse analisar dados, ele encontraria”, afirma Maria de Fátima.

Em relação às estatísticas de mortes por aborto apresentadas, ela diz que as estimativas foram feitas em parceria com pesquisadores da Universidade de Washington, e apresentou à reportagem uma carta de um especialista em Saúde Global da instituição, o cientista Mohsen Naghavi. No documento, Naghavi confirma que o Ministério da Saúde utilizou os dados do estudo Global Burden of Disease (Carga Global de Morbidade), que é promovido pela universidade americana.

Não há nesse documento, contudo, uma explicação sobre como o Ministério da Saúde chegou ao número de internações por aborto. A ex-servidora da pasta afirma que não pode “contar o caminho das pedras”. “Não quero que eles saibam, ou vão começar a sancionar os médicos nos hospitais, como acontece em vários países. Veja o exemplo de El Salvador e Nicarágua, onde os médicos são obrigados a denunciar as vítimas”, diz ela, fazendo referência a casos de países em que mulheres têm sofrido sanções penais por praticarem o aborto, segundo reportam alguns veículos.

Ela alega ainda que é “difícil haver mortes por aborto induzido registradas como causas de morte, por causa dos riscos que as mulheres podem sofrer se sobreviverem” e que, por isso, as mulheres são internadas com outros diagnósticos.

Além de duvidosos, números da saúde pública desviam a discussão do aborto das questões essenciais, dizem especialistas

Lenise Garcia, professora aposentada do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (​UnB) e presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida, afirma que, muitas vezes, os ativistas tiram proveito da dificuldade de checagem de certos dados para apresentar estimativas duvidosas.

Ela aponta que a falta de rigor com os números por parte dos ativistas pró-aborto gera algumas situações absurdas, como as estimativas de abortos por ano no Brasil, que variam de 500 mil a 1 milhão de casos.

“Eu até já comentei que, em institutos de pesquisas nas eleições, existe aquela margem de erro de 2%, 3% para mais ou para menos… Nas estimativas para defender a legalização do aborto, a margem de erro chega a ser de 100%”, ironiza.

Segundo Lenise, a insistência no uso de estatísticas e na tentativa de trazer o debate para o campo da saúde pública também acabam desviando as discussões sobre o aborto daquilo que é essencial.

“(Usam) slogans ligados a isso, como ‘aborto é uma questão de saúde pública’, justamente por falta de argumentos reais quando se vai para o plano filosófico, de direitos humanos etc. – embora eles também argumentem, supostamente, com relação ao direito da mulher, o que eu penso que não é verdade. O direito à vida é algo que se impõe de forma muito absoluta quando a gente pensa no plano filosófico. Então, os argumentos nesse plano ficam muito mais a favor do movimento pró-vida. Inclusive, o que nos leva a defender a vida do nascituro é a percepção muito clara desse direito. Realmente é um campo no qual não querem debater”, diz a especialista.

Para o filósofo Francisco Razzo, que também é colunista da Gazeta do Povo, “independente dos dados estatísticos, a questão do aborto precisa ser pensada em relação ao que o aborto efetivamente significa, que é a interrupção de uma gestação para matar, obstruir a possibilidade da vida de alguém que já é uma pessoa; não se pode perder isso de vista”.

"A quantidade de abortos, independente de qual for, não pode ser justificativa para a liberação do aborto. Não existe uma relação de cunho argumentativo, normativo, lógico e jurídico, nenhuma possibilidade de fundamentação de uma ética, nada, que justifique essa decisão com dados estatísticos”, diz ele.

"E se existisse tudo isso de abortos? E se os dados estivessem corretos? Ainda assim, isso não comprova que o aborto deve ser feito”, acrescenta.

Razzo considera ainda que “entupir o debate com dados estatísticos é uma forma de desviar a atenção daquilo que é mais importante”. Além disso, os ativistas pró-aborto costumam empregar, segundo ele, uma “retórica emotivista” e revelar um desconhecimento sobre a natureza da vida humana. Ele usa como exemplo disso um argumento comum entre abortistas de que algumas mulheres estariam se arriscando ao usar agulhas de crochê para abortar. O argumento é autocontraditório, já que grande parte dos abortistas defende a legalização do aborto para somente até 12 semanas de gestação.

“Uma mulher que enfia uma agulha no útero está fazendo isso com quantas semanas de gestação? Normalmente não vai ser abaixo de 12 semanas, porque em uma gestação com menos de 12 semanas não é necessário enfiar uma agulha no útero para fazer o aborto. Uma mulher que faz isso, geralmente, está praticando o aborto de uma gestação para além de 12 semanas”, observa ele. “Quando a gente começa a sair do campo das estatísticas, das abstrações terríveis, e começa a ir às minúcias, as estratégias retóricas vão se dissolvendo.”

Para ele, em qualquer debate sobre o aborto, não se pode perder de vista o principal: “assumir sempre o princípio de que a vida do embrião é uma vida que vale”.

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