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Estados e prefeituras usam dados de geolocalização de celulares para monitorar aglomerações de pessoas: invasão de privacidade ou garantia à vida.
Estados e prefeituras usam dados de geolocalização de celulares para monitorar aglomerações de pessoas: invasão de privacidade ou garantia à vida.| Foto: Pixabay

O rastreamento de telefones celulares virou um instrumento poderoso contra aglomerações de pessoas em tempos de isolamento social por causa do risco de transmissão do novo coronavírus. Por meio desse monitoramento, as autoridades conseguem tomar providências em tempo real para dispersar multidões e orientar as pessoas dos riscos da Covid-19.

Estados como São Paulo e Rio de Janeiro e capitais como Recife usam dados de localização dos celulares graças a acordos com operadoras de telecomunicação e a parcerias com empresas, como a startup In Loco, que oferece de graça a tecnologia necessária para entender o comportamento de localização dos usuários.

Com bases nesses dados, a empresa divulga o índice de isolamento social nacional e por estado. Segundo a última análise feita, 58,7% dos brasileiros estavam em quarentena na última sexta-feira (10) — em 22 de março, esse índice chegou a 69%.

Apesar da importância da medida no combate ao contágio pelo novo vírus, o monitoramento despertou reações desconfiadas de parte dos brasileiros. Temem que a privacidade e o direito de ir e vir estejam sendo infringidos pelos governantes.

Como tem sido o uso de dados de celulares durante a pandemia

No estado de São Paulo, os dados fornecidos por operadoras com base no sinal emitido pelas antenas de celular viram gráficos e mapas em telas no gabinete de crise do governo paulista. Nos mapas de calor, as cores quentes mostram os bairros onde há maior movimentação de pessoas. Em verde, onde tem menos gente circulando. O gráfico aponta que os idosos são os que mais têm ficado em casa. O sistema revela o índice de isolamento por cidade e também a média do estado.

A prefeitura do Recife adotou medida semelhante. Em parceria com a In Loco, autoridades têm acesso ao mapeamento de aglomerações, pela geolocalização das pessoas. Caso necessário, direcionam carros de som para os locais onde há ajuntamento ou enviam mensagens por meio de aplicativos instalados nos celulares. De acordo com o governo local, apenas os dados de geolocalização são colhidos.

No Rio de Janeiro, a cooperação entre o governo do estado e operadoras de telefonia é semelhante à de São Paulo e permite que, por meio do sinal emitido pela antena dos celulares, haja um monitoramento do fluxo de pessoas – também sem identificar dados específico. Os governos de Alagoas, Amapá, Amazonas, Maranhão, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba e Santa Catarina também realizam o monitoramento de celulares.

O que o Brasil está fazendo não é nenhuma inovação. Outros países como China, Reino Unido, Israel, Suíça já fazem o mesmo. Alguns com o propósito de monitorar o deslocamento dos infectados pelo vírus e isolar áreas de contágio.

O Ministério da Ciência, da Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) anunciou, de forma tímida, em 28 de março, que havia firmado um acordo com operadoras de telecomunicação. "Um acordo de cooperação realizado pelo @mctic e as operadoras de telecomunicação viabiliza a utilização de dados de aglomerações urbanas para enfrentamento ao coronavírus, permitindo a melhoria das políticas públicas de saúde", tuitou o ministro Marcos Pontes. A postagem, mais tarde, foi excluída. Procurada pela reportagem, a pasta não se manifestou sobre a exclusão da publicação e não deu mais informações sobre o comunicado.

“O que nós estamos disponibilizando ao governo é um dado estatístico agregado. Não vamos falar em número de linha nem em nome da pessoa. Em tal dia estavam conectadas tantas linhas em tal antena. Isso é um mapa. Olha por cima do país e enxerga como se dá a concentração de pessoas, deslocamento delas por meio deste mecanismo estatístico”, explicou o presidente executivo do Sinditelebrasil, Marcos Ferrari, à Agência Brasil.

De acordo com o sindicato das empresas de telecomunicações, são repassados dados agregados e anonimizados da circulação dos seus clientes. Os dados permitem visualizar “manchas de calor” da concentração de pessoas em localidades de todo o país, auxiliando o governo a localizar onde estão ocorrendo aglomerações.

André Ferraz, CEO da In Loco, afirma que os dados disponibilizados pela empresa são anônimos e que há respeito pela privacidade individual das pessoas. Usuários que se sintam incomodados com a coleta de dados podem solicitar, via site, que a startup pare de fazer isso.

O índice proposto pela empresa mostra a proporção dos smartphones que permaneceram pardos em uma determinada região em relação à quantidade de smartphones presentes. “Se um smartphone deixa seu local de moradia, ele conta negativamente para o índice daquela região, enquanto os smartphones que permanecem durante o dia todo em casa contam positivamente”, explica Ferraz. O CEO afirma que a tecnologia de geolocalização da In Loco é “trinta vezes mais precisa que o GPS”.

Uso de dados de celulares coloca liberdade na berlinda

Especialistas consultados pela Gazeta do Povo divergem sobre se o monitoramento dos celulares sem consentimento quebra a privacidade e o anonimato dos usuários.

Advogado especialista em crimes virtuais, Jonatas Lucena entende a ação como uma total violação à intimidade do cidadão. "A Constituição preserva completamente nossa liberdade. Órgãos públicos e empresas privadas não podem, simplesmente, invadir e saber onde está esse ou aquele smartphone", diz. "Nossa Constituição veda esse tipo de medida. A liberdade estaria em xeque e seria uma atitude ilegal."

Ele propõe duas maneiras de o governo fazer esse monitoramento sem incorrer em violação. A primeira forma seria adotar proposta semelhante a do Rio e do Recife, por exemplo, colhendo apenas informações conhecidas como "anonimizadas", quando não é possível identificar o indivíduo por trás do dado.

"Outra opção seria, por exemplo, lançar um aplicativo para dar dicas aos usuários sobre o coronavírus e, nos termos de uso do app, estabelecer autorização ao governo para saber a localização dos titulares, como ocorre nos serviços do Google e Facebook", sugere. O alcance dessa medida seria um impasse, uma vez que ainda há populações, como as mais pobres, que não possuem acesso à internet.

Direito à vida e direito à privacidade

Por outro lado, Lygia Moreno, advogada especialista em Direito do Consumidor e Direito Digital, com mestrado em proteção de dados pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), diz existir amparo legal para colher dados e monitorar aglomerações.

A Constituição Federal, em seu artigo artigo 5º, garante a todo cidadão a "inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Essas garantias, não necessariamente, se anulam, afirma a advogada. Mas, num contexto de ameaça sanitária como a causada pelo novo coronavírus, uma se sobrepõe à outra: a tutela da vida em detrimento da privacidade.

"Eles estão se colidindo? Eu diria que nenhum deles [direitos] é absoluto. O interesse do governo em se utilizar desses dados é pela tutela da saúde e da vida do cidadão. Se essa for a finalidade, é totalmente legítimo", explica. "De certa maneira, os direitos não são antagônicos".

A Lei 13.709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que vai entrar em vigor no início de 2021, prevê que é legal a coleta de dados, caso o objetivo fim seja a proteção da vida do cidadão titular das informações ou até mesmo de terceiros. "E, para isso, não é preciso o consentimento das pessoas, porque, nesse momento, a finalidade, que é a vida, acaba de sobrepondo à privacidade", diz a especialista.

Menos invasiva

A LGPD estabelece parâmetros para que a utilização dos dados seja feita de forma menos invasiva, respeitando a privacidade das pessoas. Uma delas é tentar, ao máximo, utilizar dados anonimizados. "Isso seria exatamente o seguinte: eu só coleto dados que forem estritamente necessários para a tutela que eu preciso. Se eu só preciso de informações como idade e sexo, não coleto mais do que isso", explica Lygia.

Caso a finalidade para qual foram coletados os dados se esgotou, é preciso descartá-los ou, para continuar o tratamento das informações, é preciso ter o consentimento da população ou outra base legal que legitime a ação. É o que a IN Loco promete publicamente fazer, conforme orientações que constam em seu site de apresentação.

"Não é possível continuar esse tratamento além do contexto que estamos vivendo. Se fossem levar, teriam de fundamentar em outra base legal", diz a advogada. "A Lei Geral de Proteção de Dados aborda, em seu artigo 7º, os fundamentos para o tratamento de dados, ou seja, tudo que pode se fazer com eles, como coleta, manutenção, compartilhamento. Se eu não tenho fundamento para o tratamento, não posso levar adiante. Um dos fundamentos é o consentimento, outro é a tutela da vida, da saúde. Há dez fundamentos possíveis, se eu não conseguir alocar em algum desses, o tratamento é ilícito".

"Se a coleta é para a proteção à vida, e acaba o período de pandemia, para manter o tratamento eu tenho que alocar em algum outro fundamento. Ou em uma obrigação legal, ou no próprio consentimento do titular. Se eu não conseguir manter, tenho que descartá-lo", explica.

Conteúdo editado por:Sergio Luis de Deus
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